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DISCOS - LANÇAMENTOS
Schubert ganha um outro tempo com Uchida
especial para a Folha
Com Beethoven, a forma da música passa a ser um problema que o
compositor se propõe a resolver.
Depois de Beethoven, o problema
da música passa a ser o próprio
Beethoven, que cada compositor
tem de resolver a seu modo.
Virtudes e fracassos da música
de Schubert (1797-1828) são maneiras de ler o legado aparentemente insuperável do seu precursor. "Os Impromptus Op. 90 e Op.
128" estão entre os exemplos mais
consumados de como Schubert
descobre, então, uma música para
além de Beethoven, inaugurando o
que chamamos de "romantismo".
O ponto central é o tratamento
dos temas e motivos. Com Beethoven, cria-se toda uma dialética da
composição, a partir dos motivos.
Já em Schubert, com suas formas
"sem forma", muito longas, sem
um sentido claro de direção, o desenvolvimento dos motivos sugere
uma espécie de comentário ou crítica, verdadeiras exegeses da música pela música.
Mas o tom não é o da escolástica,
muito pelo contrário: o mais característico em Schubert é a difusão do lirismo pelo corpo de um
movimento inteiro, não mais associado a um tema só.
Escritos em 1827, no último ano
de vida de Schubert (o ano miraculoso dos "Die Winterreise" e
"Das Schwanengesang", além da
"Sonata em Si Bemol Maior", dos
"Moments Musicaux" e do
"Quinteto de Cordas", entre outras peças), os "Impromptus" se
dividem em dois grupos de quatro,
organizados livremente segundo
uma sequência que sugere (não
mais que isso) a organização de
uma sonata.
Ganham no conjunto, mas podem ser ouvidos um a um. Cada
improviso é como um poema individual, numa coletânea -analogia que não é casual para um compositor tão ligado à poesia quanto
Schubert e tão preocupado com a
transformação da música numa
outra espécie, mais íntima e humana de arte.
O CD recém-lançado de Mitsuko
Uchida é o primeiro de sua projetada edição completa das obras para piano-solo de Schubert (gravadora Philips).
Próximos lançamentos
Neste ano, ainda deve sair o segundo, com as "Sonatas D. 840"
("Relíquia") e "D. 894". Depois
disso, serão dois CDs por ano até
2001. A série preserva o memorável ciclo Schubert/Schoenberg interpretado ao vivo por Uchida no
ano de 1994/95, em Londres, Nova
York, Viena e outras capitais.
Faz companhia a sua integral das
sonatas de Mozart, incorporadas à
"Mozart Edition", da Philips, e à
gravação em curso dos "Concertos para Piano e Orquestra", de
Beethoven, com a Royal Concertgebow Orchestra, regida por Kurt
Sanderling.
De todos esses ciclos, talvez o
Schubert ainda venha a se mostrar
o maior. "Para a música, é preciso
tempo. Para Schubert, é preciso
tempo", disse Uchida numa entrevista recente à revista "Gramophone". O diagnóstico soa quase
simplório, mas se transforma em
sabedoria à luz do que ela faz dos
"Impromptus".
O tempo em Schubert é assunto
de qualquer programa de concerto
ou encarte de disco. Mas o tempo
de Schubert de Mitsuko Uchida é
um outro tempo, redescoberto ou
criado do nada, uma sobreposição
de mentalidades com um resultado insólito.
Virtuosística sem nenhuma afetação, fluente como se a música
caísse das árvores ou fosse só uma
lembrança, uma repetição literal e
completa do que sempre se soube,
Uchida substitui o humor
("Witz") vienense por um outro
tom que reúne todo e qualquer humor dentro de si, uma nostalgia
sem objeto, de quem já está para
além dos afetos e das perdas.
As escalas do segundo improviso, "Op. 90", geralmente executadas como exercício de digitação
e bravura, caem nos ouvidos, agora, como a felicidade -ou quase,
uma recordação da felicidade desse compositor que dizia que "não
existe música alegre".
Passagens noturnas, explosões,
aberrações, acidentes: tudo encontra aqui sua tradução para outro reino, muito distante de Beethoven, onde a forma, afinal, deixa
de ter importância, sob a pressão
do acontecimento e a vida desintegrada dos motivos.
Reinventar um grande compositor e escutar música com outros
ouvidos não são coisas para qualquer um nem necessariamente para os maiores. Mas Mitsuko Uchida não fez menos que isso.
Em pleno ano do bicentenário de
nascimento, não poderia haver
homenagem mais alta do que essa
transformação de Schubert num
compositor que, de certo modo,
ele nunca foi, mas, de agora em
diante, nunca mais vai deixar de
ser.
(AN)
Disco: Schubert: Impromptus Op. 90 e Op.
142
Pianista: Mitsuko Uchida
Lançamento: Philips
Quanto: R$ 25, em média
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