São Paulo, terça, 23 de dezembro de 1997.




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DISCOS - LANÇAMENTOS
Schubert ganha um outro tempo com Uchida

especial para a Folha

Com Beethoven, a forma da música passa a ser um problema que o compositor se propõe a resolver. Depois de Beethoven, o problema da música passa a ser o próprio Beethoven, que cada compositor tem de resolver a seu modo.
Virtudes e fracassos da música de Schubert (1797-1828) são maneiras de ler o legado aparentemente insuperável do seu precursor. "Os Impromptus Op. 90 e Op. 128" estão entre os exemplos mais consumados de como Schubert descobre, então, uma música para além de Beethoven, inaugurando o que chamamos de "romantismo".
O ponto central é o tratamento dos temas e motivos. Com Beethoven, cria-se toda uma dialética da composição, a partir dos motivos. Já em Schubert, com suas formas "sem forma", muito longas, sem um sentido claro de direção, o desenvolvimento dos motivos sugere uma espécie de comentário ou crítica, verdadeiras exegeses da música pela música.
Mas o tom não é o da escolástica, muito pelo contrário: o mais característico em Schubert é a difusão do lirismo pelo corpo de um movimento inteiro, não mais associado a um tema só.
Escritos em 1827, no último ano de vida de Schubert (o ano miraculoso dos "Die Winterreise" e "Das Schwanengesang", além da "Sonata em Si Bemol Maior", dos "Moments Musicaux" e do "Quinteto de Cordas", entre outras peças), os "Impromptus" se dividem em dois grupos de quatro, organizados livremente segundo uma sequência que sugere (não mais que isso) a organização de uma sonata.
Ganham no conjunto, mas podem ser ouvidos um a um. Cada improviso é como um poema individual, numa coletânea -analogia que não é casual para um compositor tão ligado à poesia quanto Schubert e tão preocupado com a transformação da música numa outra espécie, mais íntima e humana de arte.
O CD recém-lançado de Mitsuko Uchida é o primeiro de sua projetada edição completa das obras para piano-solo de Schubert (gravadora Philips).
Próximos lançamentos
Neste ano, ainda deve sair o segundo, com as "Sonatas D. 840" ("Relíquia") e "D. 894". Depois disso, serão dois CDs por ano até 2001. A série preserva o memorável ciclo Schubert/Schoenberg interpretado ao vivo por Uchida no ano de 1994/95, em Londres, Nova York, Viena e outras capitais.
Faz companhia a sua integral das sonatas de Mozart, incorporadas à "Mozart Edition", da Philips, e à gravação em curso dos "Concertos para Piano e Orquestra", de Beethoven, com a Royal Concertgebow Orchestra, regida por Kurt Sanderling.
De todos esses ciclos, talvez o Schubert ainda venha a se mostrar o maior. "Para a música, é preciso tempo. Para Schubert, é preciso tempo", disse Uchida numa entrevista recente à revista "Gramophone". O diagnóstico soa quase simplório, mas se transforma em sabedoria à luz do que ela faz dos "Impromptus".
O tempo em Schubert é assunto de qualquer programa de concerto ou encarte de disco. Mas o tempo de Schubert de Mitsuko Uchida é um outro tempo, redescoberto ou criado do nada, uma sobreposição de mentalidades com um resultado insólito.
Virtuosística sem nenhuma afetação, fluente como se a música caísse das árvores ou fosse só uma lembrança, uma repetição literal e completa do que sempre se soube, Uchida substitui o humor ("Witz") vienense por um outro tom que reúne todo e qualquer humor dentro de si, uma nostalgia sem objeto, de quem já está para além dos afetos e das perdas.
As escalas do segundo improviso, "Op. 90", geralmente executadas como exercício de digitação e bravura, caem nos ouvidos, agora, como a felicidade -ou quase, uma recordação da felicidade desse compositor que dizia que "não existe música alegre".
Passagens noturnas, explosões, aberrações, acidentes: tudo encontra aqui sua tradução para outro reino, muito distante de Beethoven, onde a forma, afinal, deixa de ter importância, sob a pressão do acontecimento e a vida desintegrada dos motivos.
Reinventar um grande compositor e escutar música com outros ouvidos não são coisas para qualquer um nem necessariamente para os maiores. Mas Mitsuko Uchida não fez menos que isso.
Em pleno ano do bicentenário de nascimento, não poderia haver homenagem mais alta do que essa transformação de Schubert num compositor que, de certo modo, ele nunca foi, mas, de agora em diante, nunca mais vai deixar de ser. (AN)

Disco: Schubert: Impromptus Op. 90 e Op. 142 Pianista: Mitsuko Uchida Lançamento: Philips Quanto: R$ 25, em média


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