São Paulo, Quinta-feira, 23 de Dezembro de 1999


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LIVRO LANÇAMENTOS
Cabral ganha biografia sem visão crítica

RUI NOGUEIRA
Secretário de Redação da Sucursal de Brasília


"Nau Capitânia" é uma leitura prazerosa. O texto tem uma harmonia vocabular que ambienta o leitor em trejeitos linguísticos da época. Mas é uma biografia de resultados questionáveis.
Em parte porque o autor, o jornalista gaúcho Walter Galvani, se deu a liberdade de fazer intuições romanceadas sobre as lacunas históricas e abdicou de uma visão crítica dos fatos. Em parte porque "Pedrálvares", como era tratado o navegador português, é um personagem que não ajuda -não se conhecem ao certo as datas de nascimento e morte. Nem sequer o ano. E toda a sua vida pode ser resumida em duas dezenas de páginas.
Nasceu, cresceu, virou fidalgo, descobriu o Brasil, casou e teve seis filhos. Era alto e esbelto, longos cabelos e pernas tortas, de tanto cavalgar -fora dos padrões ibéricos. Descendente de uma família em que o avô era apelidado de "Gigante da Beira". Há dúvidas sobre se o apelido não pertencia ao pai.
O mais impressionante é o ostracismo a que foi jogado depois de descobrir o Brasil. Não há explicação na biografia.
A editora Record vendeu "Nau Capitânia" como a primeira grande biografia de Cabral, no Brasil, mas não há nada de novo a revelar. É um bom livro, assim mesmo, por ter outras virtudes.
De forma honesta, fica explícita a imensa simpatia que Galvani, ao final de anos de pesquisa, passou a nutrir pelo nobre português -toma-lhe o tempo todo as dores pela quase proscrição e apresenta-o como um injustiçado pelas intrigas da corte.
Cabral numa leitura atenta pode ser visto como um derrotado e, certamente, um sujeito irascível. Até com motivos: sentia dores de cabeça tormentosas, suores frios intermitentes e vivia situações de mal-estar a cada semana, por conta de uma malária não curada que pegara em Marrocos, quando do batismo de fogo como escudeiro.
Outro aspecto não menos tormentoso: a descoberta do Brasil não encobriu a avaliação de que o nobre Cabral não fora exatamente um navegador bem-sucedido. A maior frota já preparada para uma expedição, com 13 naus, regressou a Portugal reduzida a sete embarcações -seis na volta da Índia e uma que regressara antes, do Brasil, para dar a notícia ao rei do achamento da Terra de Vera Cruz.
Foram tantas as naus e as vidas perdidas que Cabral revigorou o dito popular de que "dos que vão à Índia, de cento não vem um". Não voltaram fidalgos de grande prestígio, como Bartolomeu Dias, que dobrara o cabo da Boa Esperança.
Os inimigos, a começar pelo ex-amigo e conselheiro Vasco da Gama, deram asas a outro dito que deixava Cabral acuado na corte: "Quem tem azar no mar, a ele não deve voltar".
Cabral nunca mais voltou, depois da expedição à Índia que o trouxe ao Brasil. E o garoto que saiu das terras dos Cabrais, Belmonte, e foi "estudar" para ser nobre cavaleiro em Lisboa passou a viver mais amargurado do que já era depois de recusar um convite do rei para chefiar nova missão à Índia.
Galvani adota o ponto de vista de que Cabral pura e simplesmente não quis dividir a chefia com um parente de Vasco da Gama. E por que o rei quis dividir o comando? Sem resposta na biografia.
O mérito maior do livro está na concentração e encadeamento bem feito das informações históricas e a reposição de fatos que são conhecidos do grande público, geralmente de forma distorcida. Caminha, por exemplo, nunca pediu emprego para um parente -pediu justiça para o genro que já tinha cumprido o tempo de degredo em São Tomé e não conseguia deixar a ilha. Que o rei desse um jeito e o tirasse de lá. Também nunca afirmou que em se plantando, tudo dá.
O pouco que se conhece de Cabral é bem costurado, ao longo das mais de 300 páginas, com os bastidores da disputa entre Portugal e Castela na empreitada marítima e o envolvimento sempre ardiloso da Igreja Católica. Há uma enorme massa de informações sobre usos e costumes dos anos 1400 e 1500, as intrigas na corte lusitana e curiosidades mil.
O olhar romanceado depõe contra o marketing editorial, mas não compromete o trabalho. Galvani deixa claro o momento em que descreve uma situação imaginária -pode incomodar ao historiador, mas não ao leitor comum.


Avaliação:    

Livro: Nau Capitânia Autor: Walter Galvani Editora: Record Quanto: R$ 30 (320 págs.)

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