São Paulo, Quinta-feira, 23 de Dezembro de 1999


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POLICIAL
Novela lembra quadrilha

RODOLFO LUCENA
Editor de Informática


A novela policial "O Homem sob a Terra", estrelada pelo detetive Lew Archer, lembra quadrilha. Não a de bandidos, de gângsteres, mas a contradança de intrincada coreografia, em que cada dançarino volteia pelo salão, de mão em mão, até estar de volta a seu par. Quem de longe assiste pode até não atinar com os meandros do passa-passa de casais, mas vê um todo harmonioso.
A história criada por Ross Macdonald (1915-1983), um dos principais escritores de novelas detetivescas dos Estados Unidos, começa com a entrada do narrador e também estrela, o detetive Archer, que se apresenta num amanhecer abafado em Los Angeles.
O próximo peão é o menino Ronny Broadhurst, vizinho de Archer, que vai ver o detetive alimentar pássaros, com direito a comer alguns amendoins.
Depois entra o pai do garoto, que "parecia uma versão crescida do menino e dava a mesma impressão de angústia". Chegava ao prédio, e na porta do apartamento estava sua mulher -cabelos presos em um rabo-de-cavalo e bonita o bastante para que o detetive lembrasse que não tinha feito a barba naquela manhã.
Os dois trocam frases tensas, pontuadas por intervenções do menino. Como pretendia, o pai leva Ronny a um passeio, supostamente à casa da avó. Os dois vão em um conversível preto em que já está uma jovem que, vista de relance por Archer, "era só ombros nus, seios protuberantes e cabelos louros flutuantes".
Eis aí os personagens que dão partida na história. Logo se descobre que o pai não levou o garoto aonde havia dito. Começa a se configurar um sequestro. A mãe sofredora e esposa abandonada se acode da força e da inteligência do vizinho detetive.
Mais que perspicaz, Archer é sortudo. A cada lugar que vai, encontra uma pista. Cada pista revela mais um personagem. Aos poucos surgem outros crimes.A rede de personagens cresce. Pais e mães dos envolvidos entram na trama, que vai de Los Angeles a San Francisco, passa pela aprazível Sausalito e volta para a cidade dos anjos, castigada por um daqueles incêndios monumentais -que podem estar relacionados a um dos crimes enrolados na teia que o sequestro de Ronny começou a desfiar.
Essa característica da novela, se lhe dá movimento, também lhe incute um certo caráter irritante. Não só tudo que o detetive toca dá certo, do ponto de vista da investigação, caindo-lhe nos braços quase de mão beijada (está certo, ele também trabalha: interroga as pessoas, busca as pistas, até toma uma cacetada), como cada personagem tem um vínculo antigo com algum outro da trama.
É um tal de fulano que namorou fulana há 20 anos e traiu a moça com uma sicrana, que ficou grávida e foi abandonada, e aí a sicrana trocou de nome e agora aparece casada com um outro, que aceitou a filha bastarda, que agora namora um desencaminhado, que é filho do sujeito que namorava...
A certa altura, o leitor menos concentrado ou quem vai lendo aos poucos pode ficar com vontade de fazer um diagrama das relações, para lembrar mais rapidamente quem namorou quem e traiu quem e pode agora ser suspeito de matar quem...
Em compensação, a leitura é muito fácil. A história se sustenta nos diálogos, nos contatos, mais que em descrições demoradas. E Archer pode ter sido um detetive bronco, mas sua capacidade de observação e pena ferina criam algumas pérolas. Assim apresenta uma personagem: "O espírito que assombra a casa. Era assim que ela parecia, pensei, em sua arcaica saia longa -muito jovem e muito velha, a avó e a neta numa só pessoa, ligeiramente esquizofrênica". O rosto da mulher "tinha uma certa nudez, desabituada à pressão de olhos".
São trechos como esses que fazem valer a pena a leitura, que, afinal, é sem compromisso, para passar o tempo.


Avaliação:    


Livro: O Homem sob a Terra Autor: Ross Macdonald Editora: Record
Quanto: R$ 22,96 (284 págs.)


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