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"APENAS UM BEIJO"
Ken Loach analisa barreiras culturais
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
O mundo pode mudar quanto quiser. Ken Loach permanece fiel a seu universo ficcional e
a seus personagens. O mundo pode tornar-se cínico quanto quiser,
os personagens de Loach ostentarão sua modéstia e o sotaque carregado. Eles são puros como um
sargento York, embora o mundo
não o seja. Não são as pessoas que
são más. Como em "Apenas um
Beijo", as instituições do homem
é que geram os problemas capazes de atormentá-los.
Desta vez estamos em Glasgow
(Escócia), e a religião será o fator
de tormenta para Roisin e Qasim.
A primeira é uma professora vagamente católica. O segundo, um
jovem e delicado muçulmano de
origem paquistanesa. Eles se apaixonam. E aí começam os problemas, pois sua família já tem um
casamento arranjado para ele e,
do ponto de vista da comunidade,
da religião, do passado, romper
com isso seria uma catástrofe.
A loira Roisen também não está
em situação confortável. Para obter um cargo no colégio onde dá
aulas de música precisa da aprovação do pároco local, que a nega
(entre outras, por ela estar morando com um muçulmano).
Aí estão, então, nossos heróis
atacados por todos os lados e tendo seu amor posto à prova na tradição de "Romeu e Julieta". Ou
quase. Sendo personagens de Ken
Loach, eles são dotados de uma
trivialidade compensada fartamente pelo tratamento realista
que recebem. Digamos que "Apenas um Beijo" é uma espécie de
"Casamento Grego" decente.
Por que decente? Porque este filme de grande sucesso fazia dos
hábitos gregos um motivo de visitação meramente turística, enquanto Loach nos aproxima das
particularidades de cada povo e
de cada religião envolvidos na trama para que sejam compreendidos e criticados.
Sobretudo a religião, que deve
promover a ligação entre as pessoas e as comunidades, é vista por
Loach como fator de intolerância
e desagregação, a partir do momento em que costumes e tradições diferentes devem conviver.
Em vez disso, tendem a se confrontar. Como no mundo de hoje
a convivência entre diversas religiões (e mesmo povos) num mesmo local é inevitável, Loach parece conceber o cinema como o lugar ecumênico a partir do qual
pode-se semear a tolerância.
O que é virtude na ficção de
Loach tende, nessas circunstâncias, a se tornar um problema e
até mesmo um fardo. A história
narrada perde fluência para se
tornar didática. Os personagens
deixam de se comportar em função do que são para existir apenas
em função daquilo que podem
nos comunicar -e que caiba no
ideário do realizador.
O excesso de didatismo é um
fantasma que ameaça todos os filmes de Loach, já que é preciso caminhar num fio de navalha entre
o propósito educativo do cinema
e o didatismo. No primeiro caso,
o filme vive e respira o realismo
loachiano. No segundo, torna-se
repetitivo e maçante. Se "Apenas
um Beijo" tem uma virtude inegável é a de desenvolver plenamente
esses dois lados tão fortes -e de
resultados tão contrários- do cinema do autor britânico.
Apenas um Beijo
Ae Fond Kiss...
Direção: Ken Loach
Produção: Reino Unido/Bélgica/Itália/
Espanha/Alemanha, 2003
Com: Atta Yaqub, Eva Birthistle
Quando: a partir de hoje nos cines HSBC, Reserva Cultural e Cinesesc
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