São Paulo, sexta-feira, 23 de dezembro de 2005

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"APENAS UM BEIJO"

Ken Loach analisa barreiras culturais

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

O mundo pode mudar quanto quiser. Ken Loach permanece fiel a seu universo ficcional e a seus personagens. O mundo pode tornar-se cínico quanto quiser, os personagens de Loach ostentarão sua modéstia e o sotaque carregado. Eles são puros como um sargento York, embora o mundo não o seja. Não são as pessoas que são más. Como em "Apenas um Beijo", as instituições do homem é que geram os problemas capazes de atormentá-los.
Desta vez estamos em Glasgow (Escócia), e a religião será o fator de tormenta para Roisin e Qasim. A primeira é uma professora vagamente católica. O segundo, um jovem e delicado muçulmano de origem paquistanesa. Eles se apaixonam. E aí começam os problemas, pois sua família já tem um casamento arranjado para ele e, do ponto de vista da comunidade, da religião, do passado, romper com isso seria uma catástrofe.
A loira Roisen também não está em situação confortável. Para obter um cargo no colégio onde dá aulas de música precisa da aprovação do pároco local, que a nega (entre outras, por ela estar morando com um muçulmano).
Aí estão, então, nossos heróis atacados por todos os lados e tendo seu amor posto à prova na tradição de "Romeu e Julieta". Ou quase. Sendo personagens de Ken Loach, eles são dotados de uma trivialidade compensada fartamente pelo tratamento realista que recebem. Digamos que "Apenas um Beijo" é uma espécie de "Casamento Grego" decente.
Por que decente? Porque este filme de grande sucesso fazia dos hábitos gregos um motivo de visitação meramente turística, enquanto Loach nos aproxima das particularidades de cada povo e de cada religião envolvidos na trama para que sejam compreendidos e criticados.
Sobretudo a religião, que deve promover a ligação entre as pessoas e as comunidades, é vista por Loach como fator de intolerância e desagregação, a partir do momento em que costumes e tradições diferentes devem conviver. Em vez disso, tendem a se confrontar. Como no mundo de hoje a convivência entre diversas religiões (e mesmo povos) num mesmo local é inevitável, Loach parece conceber o cinema como o lugar ecumênico a partir do qual pode-se semear a tolerância.
O que é virtude na ficção de Loach tende, nessas circunstâncias, a se tornar um problema e até mesmo um fardo. A história narrada perde fluência para se tornar didática. Os personagens deixam de se comportar em função do que são para existir apenas em função daquilo que podem nos comunicar -e que caiba no ideário do realizador.
O excesso de didatismo é um fantasma que ameaça todos os filmes de Loach, já que é preciso caminhar num fio de navalha entre o propósito educativo do cinema e o didatismo. No primeiro caso, o filme vive e respira o realismo loachiano. No segundo, torna-se repetitivo e maçante. Se "Apenas um Beijo" tem uma virtude inegável é a de desenvolver plenamente esses dois lados tão fortes -e de resultados tão contrários- do cinema do autor britânico.


Apenas um Beijo
Ae Fond Kiss...
  

Direção: Ken Loach
Produção: Reino Unido/Bélgica/Itália/ Espanha/Alemanha, 2003
Com: Atta Yaqub, Eva Birthistle
Quando: a partir de hoje nos cines HSBC, Reserva Cultural e Cinesesc


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