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DRAUZIO VARELLA
A lagoa do jacaré
Em 30 anos, calcula ter retirado da terra 50 quilos do vil metal, mas não economizou nada
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JAMAIS ENTREI em botequim tão
sórdido. Na frente, o nome em
letras rebuscadas, Lagoa do Jacaré, ao lado de um desenho tosco
do réptil crocodiliano.
As paredes internas, um dia pintadas de azul-ingênuo, estavam infiltradas por manchas disformes da
umidade que subia até o teto metálico, barulhento sob a tempestade
amazônica que caía.
O interior era despojado: mesinhas e cadeiras em petição de miséria, uma mesa de bilhar, a geladeira
enferrujada e a TV numa prateleira,
exibindo um DVD de música brega a
plenos pulmões. Ao lado dela, um
gato dourado acenava com a mão direita num adeus interminável.
Com os tacos em volta da mesa de
bilhar, quatro indígenas se alternavam para jogar as bolas nas caçapas,
tarefa que exigia alisar e rejuntar
previamente os fragmentos esgarçados do feltro verde.
O homem atarracado atrás do balcão me recebeu efusivamente:
-A chuva pegou o senhor de jeito!
Jacaré, a seu dispor.
Na verdade, o queixo protruso e os
dentes inclinados para fora dispensavam a apresentação do proprietário do estabelecimento. Pedi uma
cerveja, e depois outra. Enquanto
durou o temporal, Jacaré me apresentou a esposa grávida, mocinha,
da etnia Baré, contou que havia nascido no Maranhão e trabalhado na
roça até os 16 anos, quando resolveu
entrar para o garimpo, iludido com
as histórias de um tio que voltara de
Roraima com ouro até nos dentes.
Na romaria incessante dos garimpeiros, seres dispostos a percorrer
milhares de quilômetros atrás do
primeiro boato de ouro farto, andou
pelo norte de Mato Grosso, Rondônia, Serra Pelada, Santa Isabel do
Rio Negro, Pico da Neblina e invadiu
o território venezuelano diversas
vezes, indiferente à possibilidade de
encontrar a morte.
Em 30 anos de atividade, calcula
ter retirado da terra e do leito submerso dos rios da bacia do rio Negro
mais de 50 quilos do vil metal. Mas
não conseguiu economizar um grama sequer:
-Por que só trabalhei para as mulheres. Era juntar meia-dúzia de pepitas para fechar uma casa na zona
com os amigos. Tudo por minha
conta. Cheguei a fazer um tapete de
notas de dez reais sem deixar uma
fresta, só para impressionar uma
gaúcha de olhos azuis. Coisa mais
linda!
Numa visita a Manaus, depois de
meses embrenhado na mata, contratou dois táxis para passear pelo
centro:
-No da frente, ia eu, no de trás,
meu chapéu sozinho.
A vida urbana não lhe permitia
acumular riqueza; com exceção de
uma vez, num garimpo distante em
que chegou a juntar cinco quilos de
ouro:
-Em compensação, quando cheguei na cidade, fui direto para a Caixa Econômica. Recebi um pacotão
de dinheiro. Amarrei num barbante
grosso, prendi no cinto e saí puxando pela rua.
Para os amigos, justificava:
-Andei a vida inteira atrás desse
desgraçado. Agora é ele que anda
atrás de mim.
Na peregrinação atrás da fortuna,
perdeu companheiros com malária
e febres misteriosas e testemunhou
mortes violentas. Risco de morte
correu uma única vez, no dia em que
resolveu comprar cigarro num garimpo de Alta Floresta e foi atendido
por uma moça de olhar penetrante
que sorriu ao servi-lo. Mal teve tempo para retribuir o sorriso, escutou o
primeiro tiro que levantou poeira a
poucos centímetros de seus pés.
Quando virou para trás, deu de cara
com o autor dos disparos:
-Era um conterrâneo de olhos de
fogo e chapéu de boiadeiro. Deu
mais quatro tiros tão perto que encheram minhas calças de terra.
Depois de atirar, o conterrâneo
perguntou se ele tinha alguma reclamação. Jacaré encolheu os ombros:
-Eu? O bar é seu, a mulher é sua,
vou reclamar do que?
A decisão de abandonar a vida errante foi tomada no dia em que assistiu a um show de uma ex-artista
de TV, num garimpo do Pará. Depois do espetáculo, Jacaré ofereceu
um quilo de ouro pelo direito de desfrutar da companhia encantadora.
A moça agradeceu, mas disse que
tinha namorado. Ele não se deu por
vencido:
-Mas um quilo de ouro é tudo que
eu tenho. Dou para você e fico sem
nada.
-Se meu namorado for embora,
também fico sem nada.
O garimpeiro ficou admirado:
-Depois, pensei: vou largar essa
vida aventureira. Se continuar, acabo velho sem ter um canto e sem encontrar uma mulher para falar de
mim com a doçura que aquela moça
falou do namorado.
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