São Paulo, sábado, 23 de dezembro de 2006

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DRAUZIO VARELLA

A lagoa do jacaré


Em 30 anos, calcula ter retirado da terra 50 quilos do vil metal, mas não economizou nada

JAMAIS ENTREI em botequim tão sórdido. Na frente, o nome em letras rebuscadas, Lagoa do Jacaré, ao lado de um desenho tosco do réptil crocodiliano.
As paredes internas, um dia pintadas de azul-ingênuo, estavam infiltradas por manchas disformes da umidade que subia até o teto metálico, barulhento sob a tempestade amazônica que caía.
O interior era despojado: mesinhas e cadeiras em petição de miséria, uma mesa de bilhar, a geladeira enferrujada e a TV numa prateleira, exibindo um DVD de música brega a plenos pulmões. Ao lado dela, um gato dourado acenava com a mão direita num adeus interminável.
Com os tacos em volta da mesa de bilhar, quatro indígenas se alternavam para jogar as bolas nas caçapas, tarefa que exigia alisar e rejuntar previamente os fragmentos esgarçados do feltro verde.
O homem atarracado atrás do balcão me recebeu efusivamente:
-A chuva pegou o senhor de jeito! Jacaré, a seu dispor.
Na verdade, o queixo protruso e os dentes inclinados para fora dispensavam a apresentação do proprietário do estabelecimento. Pedi uma cerveja, e depois outra. Enquanto durou o temporal, Jacaré me apresentou a esposa grávida, mocinha, da etnia Baré, contou que havia nascido no Maranhão e trabalhado na roça até os 16 anos, quando resolveu entrar para o garimpo, iludido com as histórias de um tio que voltara de Roraima com ouro até nos dentes.
Na romaria incessante dos garimpeiros, seres dispostos a percorrer milhares de quilômetros atrás do primeiro boato de ouro farto, andou pelo norte de Mato Grosso, Rondônia, Serra Pelada, Santa Isabel do Rio Negro, Pico da Neblina e invadiu o território venezuelano diversas vezes, indiferente à possibilidade de encontrar a morte.
Em 30 anos de atividade, calcula ter retirado da terra e do leito submerso dos rios da bacia do rio Negro mais de 50 quilos do vil metal. Mas não conseguiu economizar um grama sequer:
-Por que só trabalhei para as mulheres. Era juntar meia-dúzia de pepitas para fechar uma casa na zona com os amigos. Tudo por minha conta. Cheguei a fazer um tapete de notas de dez reais sem deixar uma fresta, só para impressionar uma gaúcha de olhos azuis. Coisa mais linda!
Numa visita a Manaus, depois de meses embrenhado na mata, contratou dois táxis para passear pelo centro:
-No da frente, ia eu, no de trás, meu chapéu sozinho.
A vida urbana não lhe permitia acumular riqueza; com exceção de uma vez, num garimpo distante em que chegou a juntar cinco quilos de ouro:
-Em compensação, quando cheguei na cidade, fui direto para a Caixa Econômica. Recebi um pacotão de dinheiro. Amarrei num barbante grosso, prendi no cinto e saí puxando pela rua.
Para os amigos, justificava:
-Andei a vida inteira atrás desse desgraçado. Agora é ele que anda atrás de mim.
Na peregrinação atrás da fortuna, perdeu companheiros com malária e febres misteriosas e testemunhou mortes violentas. Risco de morte correu uma única vez, no dia em que resolveu comprar cigarro num garimpo de Alta Floresta e foi atendido por uma moça de olhar penetrante que sorriu ao servi-lo. Mal teve tempo para retribuir o sorriso, escutou o primeiro tiro que levantou poeira a poucos centímetros de seus pés. Quando virou para trás, deu de cara com o autor dos disparos:
-Era um conterrâneo de olhos de fogo e chapéu de boiadeiro. Deu mais quatro tiros tão perto que encheram minhas calças de terra.
Depois de atirar, o conterrâneo perguntou se ele tinha alguma reclamação. Jacaré encolheu os ombros:
-Eu? O bar é seu, a mulher é sua, vou reclamar do que?
A decisão de abandonar a vida errante foi tomada no dia em que assistiu a um show de uma ex-artista de TV, num garimpo do Pará. Depois do espetáculo, Jacaré ofereceu um quilo de ouro pelo direito de desfrutar da companhia encantadora.
A moça agradeceu, mas disse que tinha namorado. Ele não se deu por vencido:
-Mas um quilo de ouro é tudo que eu tenho. Dou para você e fico sem nada.
-Se meu namorado for embora, também fico sem nada.
O garimpeiro ficou admirado:
-Depois, pensei: vou largar essa vida aventureira. Se continuar, acabo velho sem ter um canto e sem encontrar uma mulher para falar de mim com a doçura que aquela moça falou do namorado.


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