São Paulo, sábado, 24 de janeiro de 2004

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SP 450

Modernistas juntaram 30 sacas de café para comprar documento em Londres, em 1926; hoje ele nem está exposto

Ipiranga esconde carta rara de Anchieta

Jefferson Copolla/Folha Imagem
Livro com originais de Anchieta, em exposição no Pátio do Colégio


LAURA MATTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

O "frisson" da exposição de originais de cartas de Anchieta no Pátio do Colégio, aberta ao público a partir de amanhã, não é nada perto do que houve na sociedade paulistana, em 1926, em torno de uma correspondência do jesuíta.
Mário de Andrade e seus colegas modernistas descobriram, num leilão de uma livraria de Londres, um documento redigido pelo padre em novembro de 1579. Custava 200 libras ou 30 sacas de café, a "moeda" paulista à época.
Para trazer a relíquia de volta à cidade "anchietana", os intelectuais fizeram uma verdadeira campanha, durante três meses.
Uma "vaquinha" entre fazendeiros e artistas juntou as 30 sacas e, em abril de 1926, a epístola foi entregue pelos modernistas, numa pomposa cerimônia, ao Museu Paulista (do Ipiranga).
Hoje, quase 78 anos depois, a raridade não está exposta (mas guardada no arquivo), e pesquisadores do museu desconhecem a saborosa história de sua procedência. "Desde 1994, temos um projeto de organização e busca da origem do acervo, mas são milhares de documentos", disse Vânia Carvalho, supervisora do Serviço de Documentação Textual do museu, que ficou surpresa com as informações relatadas pela Folha.
Segundo ela, quem quiser ver a carta deve marcar uma consulta pelo tel. 0/xx/11/6165-8007.

Terra roxa
A mobilização pelo manuscrito de Anchieta se deu através de um jornal quinzenário, "Terra Roxa e Outras Terras", dirigido pelo jornalista, escritor e crítico modernista Antônio de Alcântara Machado (as edições com a campanha fazem parte da biblioteca do dramaturgo Sérgio Carvalho, que forneceu cópias à Folha).
O apelo aos leitores teve início em 10 de janeiro de 1926, com texto de Paulo Prado, expoente da aristocracia intelectual paulista. Ele falava do leilão londrino e da "intensa emoção" de ler as palavras do jesuíta. "Será possível que São Paulo permita que o documento precioso desapareça em algum leilão de autógrafos ou caia nas mãos de ávidos colecionadores americanos? Governo ou particular, seja como for, é preciso que o autógrafo de Anchieta volte para donde partiu séculos atrás".
A notícia da compra e da entrega ao museu foi publicada em 27 de abril. O periódico trouxe a lista dos doadores das sacas e a íntegra da epístola. Endereçada a Jerônimo Leitão, que governou a capitania de São Vicente de 1572 a 1592, relatava as agruras de seu trabalho na selvagem Piratininga.
A edição de "Terra Roxa" publicou ainda textos de figuras como Mário de Andrade ("Ficamos com dedo tremendo e comoção boa no peito quando enxergamos a carta dele amarelando a nossa vista como sombra solar do mormaço silencioso da saudade").
A história emocionou o padre César Augusto dos Santos, presidente da Associação Pró-Canonização de Anchieta. Ele guarda dois originais do jesuíta (de 1556 e 1570), além de um fragmento do fêmur. A pedido da Folha, ele realizou uma pesquisa e constatou que, dos três livros sobre correspondências de Anchieta respeitados pela Companhia de Jesus, dois citam a de 1579. Um a considera autêntica e outro, apócrifa.


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