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NINA HORTA
Quando o líquido fermentou
Põe sua cadeirinha num canto, quase na calçada, e arruma uma mesa para os clientes eventuais
LI "THE Joy of Drinking", numa
noite insone, e a autora, Barbara Holland, consegue mostrar as bebidas no mundo com um
papinho agradável e fluente.
Odeia moralismos em torno de
bebida. E eu também. Acho que os
filhos não se viciaram por causa da
atitude tranqüila do meu pai diante
da bebida, fazendo com que experimentássemos um pouquinho de tudo, de cerveja a vinho e uísque, numa posição de quem estava mostrando uma coisa boa, alegre, para
rir, ganhar mais consciência, e não
perdê-la. Pois então, odeio essa conversa de moderação.
Já sei, já sei, e como sei. Claro que
tudo tem que ser moderado. Quando meus filhos cresceram, a pessoa
que tomava conta deles, dava banho,
vestia, punha para dormir, ficou alcoólatra e, depois de muitas delongas, fomos para baixo do viaduto
Maria Paula, onde havia um encontro do AA. E eles não perguntam
quem é o alcoólatra, vão cumprimentando, mandando sentar e, de
vez em quando, a perua que colhe os
bêbados na rua joga pelas escadas os
que colheu, que caem aos trambolhões, imundos, vomitados, rasgados, espantadíssimos, no meio de
uma reunião de temperança com luz
néon. A babá, graças a eles, sarou
completamente.
Quando saio do trabalho, passo
sempre em frente a um botequim,
mas de carro. É uma garagem que se
fecha com aquelas portas de metal,
de enrolar, e às vezes pego o dono, às
cinco horas, abrindo com estrondo o
que é dele e de pouca gente mais. Deve andar lá pelos 75 anos, é barrigudo, usa sandálias de couro, short
comprido e camiseta daquelas portuguesas, sem manga. Impressionam-me seus cabelos fartos, anelados, prateados.
Põe sua cadeirinha num canto,
quase na calçada, e arruma uma mesa para os clientes eventuais. De verdade, é só isso que sei. Acho que tem
umas três garrafas, algumas moscas,
não mais que meia dúzia de copos e
um olhar pacato e bovino. Quer conversar. É um jeito de se ligar ao mundo, encontrar uns breves amigos, jogar dominó, arrotar sem que ninguém o censure. Pertenecer, como
diria o Cortázar. Foi o modo que ele
arranjou para se comunicar com outros e fugir da vida chata da casa, depois de aposentado. Ele vê homens
de verdade, como ele, que conversam sobre mulheres, futebol e bebem cachaça e cerveja.
O peito ronca, ele tosse, pigarreia,
estica as pernas varicosas, mas consegue conviver com seus pares, nada
parecidos com ele. Um magrelo esfaimado e um velho vergado sobre o
copo são o porto que o seguram na
vida para umas anedotas cafajestes e
uns palavrões ditos em dia de jogo,
um traço de ilusão.
Um dia, vi uma mão branquinha,
que passava pela porta dos fundos o
que parecia um prato de sanduíches.
Pois lá dentro deve haver uma mulher que adorou aquele botequim
que a afasta dos pigarros, das cusparadas, do jogo na TV, do mutismo,
dos pés sujos na cozinha impecável
com toalhinha de crochê.
Bem, voltando ao livro, a autora
acha que a farra e a civilização começaram quando o primeiro líquido
fermentou e era bom. E daí tivemos
que parar de mudar de casa todo dia,
que a bebida tinha um tempo de espera. E boa pesquisadora, vai de bebida em bebida principal de cada povo, observando os comportamentos.
Percebe-se, no fim, que antigamente o sujeito que bebia era um cara se
divertindo, cantando e dançando.
Mas, no dia em que James Bond
("Casino Royale", o livro) começou a
dar regras de como se fazia um bom
martini ou qualquer outro drink parecido, já não me lembro qual, começaram a aparecer as autoridades
no ramo e foi tudo por água abaixo.
Instalou-se a sisudez no assunto,
acabaram as danças de roda com
música animada. Nem a cachaça é
poupada. Bom, da próxima vez assuntamos o vinho. Como é gostoso e
fácil falar mal dos entendidos com
seus narizes educados...
ninahorta@uol.com.br
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