São Paulo, quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

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NINA HORTA

Quando o líquido fermentou

Põe sua cadeirinha num canto, quase na calçada, e arruma uma mesa para os clientes eventuais

LI "THE Joy of Drinking", numa noite insone, e a autora, Barbara Holland, consegue mostrar as bebidas no mundo com um papinho agradável e fluente.
Odeia moralismos em torno de bebida. E eu também. Acho que os filhos não se viciaram por causa da atitude tranqüila do meu pai diante da bebida, fazendo com que experimentássemos um pouquinho de tudo, de cerveja a vinho e uísque, numa posição de quem estava mostrando uma coisa boa, alegre, para rir, ganhar mais consciência, e não perdê-la. Pois então, odeio essa conversa de moderação.
Já sei, já sei, e como sei. Claro que tudo tem que ser moderado. Quando meus filhos cresceram, a pessoa que tomava conta deles, dava banho, vestia, punha para dormir, ficou alcoólatra e, depois de muitas delongas, fomos para baixo do viaduto Maria Paula, onde havia um encontro do AA. E eles não perguntam quem é o alcoólatra, vão cumprimentando, mandando sentar e, de vez em quando, a perua que colhe os bêbados na rua joga pelas escadas os que colheu, que caem aos trambolhões, imundos, vomitados, rasgados, espantadíssimos, no meio de uma reunião de temperança com luz néon. A babá, graças a eles, sarou completamente.
Quando saio do trabalho, passo sempre em frente a um botequim, mas de carro. É uma garagem que se fecha com aquelas portas de metal, de enrolar, e às vezes pego o dono, às cinco horas, abrindo com estrondo o que é dele e de pouca gente mais. Deve andar lá pelos 75 anos, é barrigudo, usa sandálias de couro, short comprido e camiseta daquelas portuguesas, sem manga. Impressionam-me seus cabelos fartos, anelados, prateados.
Põe sua cadeirinha num canto, quase na calçada, e arruma uma mesa para os clientes eventuais. De verdade, é só isso que sei. Acho que tem umas três garrafas, algumas moscas, não mais que meia dúzia de copos e um olhar pacato e bovino. Quer conversar. É um jeito de se ligar ao mundo, encontrar uns breves amigos, jogar dominó, arrotar sem que ninguém o censure. Pertenecer, como diria o Cortázar. Foi o modo que ele arranjou para se comunicar com outros e fugir da vida chata da casa, depois de aposentado. Ele vê homens de verdade, como ele, que conversam sobre mulheres, futebol e bebem cachaça e cerveja.
O peito ronca, ele tosse, pigarreia, estica as pernas varicosas, mas consegue conviver com seus pares, nada parecidos com ele. Um magrelo esfaimado e um velho vergado sobre o copo são o porto que o seguram na vida para umas anedotas cafajestes e uns palavrões ditos em dia de jogo, um traço de ilusão.
Um dia, vi uma mão branquinha, que passava pela porta dos fundos o que parecia um prato de sanduíches. Pois lá dentro deve haver uma mulher que adorou aquele botequim que a afasta dos pigarros, das cusparadas, do jogo na TV, do mutismo, dos pés sujos na cozinha impecável com toalhinha de crochê.
Bem, voltando ao livro, a autora acha que a farra e a civilização começaram quando o primeiro líquido fermentou e era bom. E daí tivemos que parar de mudar de casa todo dia, que a bebida tinha um tempo de espera. E boa pesquisadora, vai de bebida em bebida principal de cada povo, observando os comportamentos. Percebe-se, no fim, que antigamente o sujeito que bebia era um cara se divertindo, cantando e dançando. Mas, no dia em que James Bond ("Casino Royale", o livro) começou a dar regras de como se fazia um bom martini ou qualquer outro drink parecido, já não me lembro qual, começaram a aparecer as autoridades no ramo e foi tudo por água abaixo. Instalou-se a sisudez no assunto, acabaram as danças de roda com música animada. Nem a cachaça é poupada. Bom, da próxima vez assuntamos o vinho. Como é gostoso e fácil falar mal dos entendidos com seus narizes educados...


ninahorta@uol.com.br

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