São Paulo, quinta-feira, 24 de fevereiro de 2005

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CINEMA

"Cicatrizes" respeita silêncios da obra de Saer

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

"Cicatrizes" é um livro que virou filme. Sem deixar de ser um livro. Ao transpor o romance do escritor argentino Juan José Saer (de 1969) à tela, o diretor Patrício Coll preocupou-se em obedecer não só ao texto como também aos imensos silêncios que vão dando sentido à história e que são uma característica importante da literatura de Saer. Talvez por isso se perceba o uso excessivo de um tom declamatório e poético em contraste com uma claustrofóbica ausência de palavras, que pontua outros momentos significativos da narrativa.
A ação se passa em Colastiné (na província de Santa Fé), onde, além de chover o tempo todo, pouca coisa realmente acontece. Estamos nos anos 60 numa Argentina que sobrevive a seguidos golpes de Estado. Essa tensão toda, porém, parece não atingir o interior, onde as pessoas vivem em um estado de desolação constante, disfarçado pela manutenção de hábitos rígidos. Pelo menos nas aparências. Saindo da regra estão os que vivem à beira de cometer alguma transgressão que possa libertá-los desse universo estagnado.
É o caso dos três protagonistas de "Cicatrizes". Um é o advogado Sérgio (Omar Fantini), viciado em jogo que perdeu todo o seu dinheiro e agora gasta as economias de sua submissa empregada. Outro é o jovem jornalista Angel (Pablo di Croce), o personagem mais interessante da trama, voyeur com uma aguçada curiosidade sexual e que nutre um desejo secreto por sua mãe. E, por fim, há Fiore (Vando Villamil), um operário frustrado que mata a mulher.
Cada um à sua maneira, todos terão seu momento de explosão que os redimirá, mas apenas parcialmente, pois sua condição real continuará sendo a mesma. Assim como a coluna de clima que Angel redige no jornal da cidade e que diz, diariamente, "as condições do tempo se mantêm invariáveis", o universo onde se colocam esses personagens não oferece escapatória.
Ao dar tanta atenção às entrelinhas do texto de Saer quanto as linhas propriamente ditas, Coll fez literatura. Com uma câmera na mão.


CICATRIZES. Quando: hoje, às 22h35 no Canal Brasil

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