São Paulo, terça, 24 de fevereiro de 1998

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O Carnaval virou uma paisagem de nádegas

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

Hoje é Carnaval. Estou longe, em Nova York, longe da "zona" colorida que se instala no país, mas, como hoje é Carnaval e ando numa onda nostálgica, sou arremessado para 1950 de novo, no colo de meu pai, na avenida Rio Branco, vendo passar as sociedades carnavalescas.
Elas passavam justamente hoje, na terça-feira gorda. Eram grandes carros alegóricos cheios de rodas moventes, de estátuas de papel e massa, toscas e épicas, com grandes rostos, estrelas, engrenagens brilhantes, sóis, luas, cobertos de mulheres provocantes.
As "sociedades" que competiam tinham nomes meio góticos como "Pierrots da Caverna", "Tenentes do Diabo", "Fenianos", e meu pai me levava pela mão e eu olhava um imenso carro (seria grande mesmo ou era a escala de minha infância?) que era um despotismo de cachos de banana, com uma lindíssima mulher morena e nua no alto.
Os pais de família, as mães de família (todo mundo era de família...) diziam: "Olha a Elvira Pagã! Olha a Elvira Pagã". Já contei isso, mas repito. Elvira Pagã era apenas uma vedete, mas, naquele ano remoto, ela queria "provar" alguma coisa. Algumas mulheres como ela (Luz del Fuego e outras) transcendiam o palco e viravam o símbolo vivo de alguma loucura no ar, de algum desejo reprimido no coração das famílias.
Eu olhava em volta e via nas senhoras distintas a inveja infinita e escandalizada e via no meu pai um olhar que eu não conhecia, voltado para a Elvira Pagã (que nome anticristão e nu!...). Havia naquela nudez uma coragem que não vejo nos tempos libertinos de agora. Hoje, as mulheres das escolas de samba não têm mais o que despir.
Elvira Pagã foi uma precursora de todas elas. Hoje, elas travam uma competição frenética de coxas e bundas e seios. Mas o que mostrarão no futuro? Que querem elas provar do alto de sua imensa euforia? Querem nos levar para o fundo do mar como sereias? Querem provar que o sexo sem limites poderá resolver os problemas do Brasil? São políticas ou messalinas? Querem provar que nossas vidas são escuras e mesquinhas? Querem que abandonemos nossas esposas, nossos lares? Ou querem a imortalidade nua?
Há qualquer coisa de agônico e lancinante nessas nuas. Rosnarão alguns: "Você está é com inveja. Está querendo cair na gandaia e não pode, que a sua mulher não deixa..." Talvez, talvez... Mas não é só isso. As mulheres alegóricas de hoje se oferecem numa violência de curvas e rebolados, numa ostensiva volúpia, num excesso de ofertas que inviabilizam qualquer tesão. Sobra-nos um tesão sem rumo, um pênis de helicóptero, num vôo de pássaro sobre os rebolados.
Tanta é a oferta, que cai a demanda. Há uma deflação do desejo que torna impossível a satisfação. Há uma certa angústia nessa oferta panorâmica de sexo. Lembro-me do marquês de Sade, que, na "Filosofia do Boudoir", gritava numa orgia, com êxtase saciado: "Organizem-me uma paisagem de nádegas!".
A ruptura total de todas a barreiras tirou da nudez seu traço de liberdade. Há algo mais que alegria naqueles bacanais aéreos nos altos dos carros alegóricos. Tanta é a liberdade que só podemos pensar em alguma forma de... moral. É isso. Choca-me (ouso dizê-lo) fazer parte de um país cujo símbolo é o rabo das nossas mulheres. Choca-me ver nossas filhas esfregando o sexo nas lentes da TV.
Que é isso? É o ato sexual da globalização? Não há francesas, americanas ou alemãs fazendo esse elogio infinito do desejo, inclusive mentiroso, porque ninguém é tão sexy assim. Melhor dizendo -meu choque não é moral; é político. Nós viramos uma espécie de curiosa Sodoma subdesenvolvida.
Exportamos travestis e importamos turistas para se repastarem em nossas mulatas e meninas.
Havia alguma coisa profunda no antigo Carnaval brasileiro que se perdeu. Por isso, o último grande momento da arte brasileira foi quando o Joãosinho Trinta soltou os ratos e urubus na rua, com os mendigos e o Cristo embalsamado no lixo.
Foi um momento de genialidade crítica, de uma performance virando a ilusão ao avesso. Se antes ele dizia que "o povo quer é luxo", nesse dia ele se autoparodiou, fazendo a realidade desabar na avenida. A alegria excessiva que as mulheres e os homens ostentam vem sem preparação, explode de repente, como um parêntese dentro do ano morno do país.
Que liberdade é essa, que ninguém tem durante o ano? Que alegria desmesurada é essa? Essas mulheres nuas de hoje, esses impossíveis objetos do desejo, não estão fazendo nenhum manifesto político, como fizeram inconscientemente Elvira Pagã e Luz del Fuego, para o meu pai e meus olhos deslumbrados, "de volta ao futuro", em 1950.
O Carnaval dessa época era o resultado de uma alegria que ia crescendo pouco a pouco. Alegria que começava a se formar com as cigarras de dezembro, crescia os "flamboyants" e o céu azul durante os meses do verão, ressoava nas marchinhas e sambas decorados em janeiro, se antevia nas avenidas enfeitadas e acontecia de repente em fevereiro, numa debandada de perfumes e serpentinas. Havia uma alegria tosca, porém "comemorável" no país. Antes, tínhamos a sensação de que se "chegava" a um Carnaval, que o Carnaval culminava alguma coisa. Hoje o Carnaval chega pronto. Era um Carnaval real; hoje é virtual.
O Carnaval era uma revelação; hoje, ele esconde qualquer coisa. Falta um certo minimalismo no Carnaval; perdeu-se a delicadeza do detalhe. Somos esmagados por uma avalanche de imagens e corpos nus e vemos com espanto o desconforto das multidões nos blocos. Há qualquer coisa de calamidade pública no Carnaval de rua. Há algo de desesperado em certas alegrias.
Por isso, me lembro de como era solitária e forte a nudez de Elvira Pagã, como um manifesto, que ia na proa do grande navio de papelão, cheio de luzes e música, se oferecendo como um pecado público, singrando entre as multidões de classe média, em direção a hoje.



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