|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O Carnaval virou uma paisagem de nádegas
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
Hoje é Carnaval. Estou longe,
em Nova York, longe da "zona" colorida que se instala no
país, mas, como hoje é Carnaval e ando numa onda nostálgica, sou arremessado para
1950 de novo, no colo de meu
pai, na avenida Rio Branco,
vendo passar as sociedades
carnavalescas.
Elas passavam justamente
hoje, na terça-feira gorda.
Eram grandes carros alegóricos cheios de rodas moventes,
de estátuas de papel e massa,
toscas e épicas, com grandes
rostos, estrelas, engrenagens
brilhantes, sóis, luas, cobertos
de mulheres provocantes.
As "sociedades" que competiam tinham nomes meio góticos como "Pierrots da Caverna", "Tenentes do Diabo", "Fenianos", e meu pai me levava
pela mão e eu olhava um
imenso carro (seria grande
mesmo ou era a escala de minha infância?) que era um despotismo de cachos de banana,
com uma lindíssima mulher
morena e nua no alto.
Os pais de família, as mães
de família (todo mundo era de
família...) diziam: "Olha a Elvira Pagã! Olha a Elvira Pagã". Já contei isso, mas repito.
Elvira Pagã era apenas uma
vedete, mas, naquele ano remoto, ela queria "provar" alguma coisa. Algumas mulheres
como ela (Luz del Fuego e outras) transcendiam o palco e
viravam o símbolo vivo de alguma loucura no ar, de algum
desejo reprimido no coração
das famílias.
Eu olhava em volta e via nas
senhoras distintas a inveja infinita e escandalizada e via no
meu pai um olhar que eu não
conhecia, voltado para a Elvira Pagã (que nome anticristão
e nu!...). Havia naquela nudez
uma coragem que não vejo nos
tempos libertinos de agora.
Hoje, as mulheres das escolas
de samba não têm mais o que
despir.
Elvira Pagã foi uma precursora de todas elas. Hoje, elas
travam uma competição frenética de coxas e bundas e seios.
Mas o que mostrarão no futuro? Que querem elas provar do
alto de sua imensa euforia?
Querem nos levar para o fundo
do mar como sereias? Querem
provar que o sexo sem limites
poderá resolver os problemas
do Brasil? São políticas ou
messalinas? Querem provar
que nossas vidas são escuras e
mesquinhas? Querem que
abandonemos nossas esposas,
nossos lares? Ou querem a
imortalidade nua?
Há qualquer coisa de agônico e lancinante nessas nuas.
Rosnarão alguns: "Você está é
com inveja. Está querendo cair
na gandaia e não pode, que a
sua mulher não deixa..." Talvez, talvez... Mas não é só isso.
As mulheres alegóricas de hoje
se oferecem numa violência de
curvas e rebolados, numa ostensiva volúpia, num excesso
de ofertas que inviabilizam
qualquer tesão. Sobra-nos um
tesão sem rumo, um pênis de
helicóptero, num vôo de pássaro sobre os rebolados.
Tanta é a oferta, que cai a
demanda. Há uma deflação do
desejo que torna impossível a
satisfação. Há uma certa angústia nessa oferta panorâmica de sexo. Lembro-me do
marquês de Sade, que, na "Filosofia do Boudoir", gritava
numa orgia, com êxtase saciado: "Organizem-me uma paisagem de nádegas!".
A ruptura total de todas a
barreiras tirou da nudez seu
traço de liberdade. Há algo
mais que alegria naqueles bacanais aéreos nos altos dos carros alegóricos. Tanta é a liberdade que só podemos pensar
em alguma forma de... moral.
É isso. Choca-me (ouso dizê-lo) fazer parte de um país
cujo símbolo é o rabo das nossas mulheres. Choca-me ver
nossas filhas esfregando o sexo
nas lentes da TV.
Que é isso? É o ato sexual da
globalização? Não há francesas, americanas ou alemãs fazendo esse elogio infinito do
desejo, inclusive mentiroso,
porque ninguém é tão sexy assim. Melhor dizendo -meu
choque não é moral; é político.
Nós viramos uma espécie de
curiosa Sodoma subdesenvolvida.
Exportamos travestis e importamos turistas para se repastarem em nossas mulatas e
meninas.
Havia alguma coisa profunda no antigo Carnaval brasileiro que se perdeu. Por isso, o
último grande momento da arte brasileira foi quando o Joãosinho Trinta soltou os ratos e
urubus na rua, com os mendigos e o Cristo embalsamado no
lixo.
Foi um momento de genialidade crítica, de uma performance virando a ilusão ao
avesso. Se antes ele dizia que
"o povo quer é luxo", nesse dia
ele se autoparodiou, fazendo a
realidade desabar na avenida.
A alegria excessiva que as mulheres e os homens ostentam
vem sem preparação, explode
de repente, como um parêntese
dentro do ano morno do país.
Que liberdade é essa, que
ninguém tem durante o ano?
Que alegria desmesurada é essa? Essas mulheres nuas de hoje, esses impossíveis objetos do
desejo, não estão fazendo nenhum manifesto político, como
fizeram inconscientemente Elvira Pagã e Luz del Fuego, para o meu pai e meus olhos deslumbrados, "de volta ao futuro", em 1950.
O Carnaval dessa época era o
resultado de uma alegria que
ia crescendo pouco a pouco.
Alegria que começava a se formar com as cigarras de dezembro, crescia os "flamboyants" e
o céu azul durante os meses do
verão, ressoava nas marchinhas e sambas decorados em
janeiro, se antevia nas avenidas enfeitadas e acontecia de
repente em fevereiro, numa debandada de perfumes e serpentinas. Havia uma alegria tosca, porém "comemorável" no
país. Antes, tínhamos a sensação de que se "chegava" a um
Carnaval, que o Carnaval culminava alguma coisa. Hoje o
Carnaval chega pronto. Era
um Carnaval real; hoje é virtual.
O Carnaval era uma revelação; hoje, ele esconde qualquer
coisa. Falta um certo minimalismo no Carnaval; perdeu-se a
delicadeza do detalhe. Somos
esmagados por uma avalanche
de imagens e corpos nus e vemos com espanto o desconforto
das multidões nos blocos. Há
qualquer coisa de calamidade
pública no Carnaval de rua.
Há algo de desesperado em
certas alegrias.
Por isso, me lembro de como
era solitária e forte a nudez de
Elvira Pagã, como um manifesto, que ia na proa do grande
navio de papelão, cheio de luzes e música, se oferecendo como um pecado público, singrando entre as multidões de
classe média, em direção a hoje.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|