São Paulo, sexta-feira, 24 de março de 2000


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EU FUI
Saramago é mais generoso do que aparenta

BETTY MILAN
especial para a Folha, em Paris

Participei de uma mesa redonda do Salão do Livro de Paris, cujo convidado de honra era Portugal, e gostei muito de ter estado no salão. Primeiro pelo encontro que tive com José Saramago.
Peço uma entrevista para o caderno Mais!, e ele me responde que, no primeiro dia, não é possível. Alega que há muitos outros portugueses a serem entrevistados. Não faz isso para evitar o trabalho, mas por ser generoso. A prova da sua magnanimidade está no que acontece pouco depois. Mostro o texto de um júri do qual ele participou, o do prêmio Casa de las Americas relativo ao livro "Avante Soldados para Trás", de Deonísio da Silva: "O romance projeta um olhar crítico sobre a Guerra do Paraguai. A ficcionalização deste cruel episódio da história brasileira e latino-americana é feita com distanciamento irônico e revela o grande jogo de interesses que moveram essa guerra. O romance consegue narrar os pequenos grandes dramas do cotidiano, criando personagens complexos e contraditórios, por meio dos quais consegue sublinhar o absurdo dessa e de todas as guerras. O domínio das técnicas narrativas, o trabalho equilibrado com a tradição e a invenção, a linguagem sólida, sem grandes deslizes, são algumas das qualidades literárias que justificam o prêmio".
José Saramago lê esse texto e me diz que é seu. Peço então que ele o assine para que o livro encontre editor na França, onde ainda não foi publicado. O prêmio Nobel não tem a menor dúvida. Tira a caneta do bolso e assina.
Mas ter participado do salão também foi um privilégio pelas falas que ouvi. Eduardo Lourenço, considerado o maior ensaísta vivo da língua portuguesa, disse que foi educado no catolicismo e que, por ser fiel à sua infância, continuava a ser católico. Surpreendeu o auditório justificando a religiosidade pela crença na infância, e afirmando também que "embora eterna, a verdade é filha do tempo". Agustina Bessa Luís comportou-se como uma velha dama indigna.
Os escritores portugueses mostraram em Paris que o seu trabalho se inscreve na tradição da resistência e eu não pude deixar de considerar que nós brasileiros poderíamos ter aprendido tanto com o governo militar quanto eles aprenderam com Salazar.


Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de "O Papagaio e o Doutor" (Record), entre outros


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