São Paulo, quarta-feira, 24 de março de 2004

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Rastros de ódio

Associated Press
Soldado israelense interroga palestinos em posto de controle em Ramallah, na Cisjordânia, tema de "Checkpoint"


Documentário israelense e ficção palestina estréiam sexta em SP e focalizam brutalidade de conflito

SÉRGIO MALBERGIER
EDITOR DE MUNDO

Dois filmes premiados com exibição nesta semana servem como bons instrumentos para uma melhor, embora parcial, compreensão do conflito árabe-israelense.
O documentário israelense "Checkpoint" e a ficção palestina "Intervenção Divina" escancaram a brutalidade da ocupação israelense dos territórios palestinos de Gaza e Cisjordânia, tomados na guerra árabe-israelense de 1967.
Mas é preciso saber mais do que é exibido nas telas para não sair do cinema com visões unilaterais de um conflito sangrento de alta complexidade, em que os papéis de algoz e vítima são vividos pelas duas partes protagonistas.
O filme mais impactante é "Checkpoint", de Yoav Shamir, no qual uma câmera registra cruamente o cotidiano nas barreiras que Israel ergueu nas saídas das cidades palestinas para evitar, segundo o país, o trânsito do terrorismo. Transformou essas cidades em prisões, e uma simples visita a parentes, num ritual humilhante e, por isso, revoltante.
Os "checkpoints" são feridas abertas e profundas da ocupação, que oprime palestinos e israelenses. São neles que jovens israelenses, nos seus primeiros 20 anos, impõem medidas draconianas tomadas pelo governo como resposta (inócua) ao irracional terrorismo palestino (também inócuo em seus objetivos).
Famílias palestinas imploram para irem de uma cidade a outra em busca de hospitais, parentes, trabalho. Muitas vezes são barradas na volta para casa. Mães e filhos são separados. Pais são humilhados na frente dos filhos. Trabalhadores são obrigados a esperar horas em filas. Casos como os relatados no filme acontecem todos os dias, revoltando os palestinos, punidos coletivamente pelos atos bárbaros de uma pequena minoria terrorista que explode pizzarias, ônibus, discotecas, crianças. O paradoxo, exposto em "Checkpoint", é que as medidas israelenses são tão revoltantes que só podem aumentar os candidatos a homens e mulheres-bomba.
Já "Intervenção Divina", de Elia Suleiman, opera num difícil e ambicioso registro ficcional. É um filme enigmático, cheio de simbolismos, metáforas, silêncios e explosões. E lento, mas interessante.
Enquanto no filme israelense a intervenção do "autor" parece mínima, aqui fica clara a autoria. E menos claros os significados.
A história é fragmentada, transitando entre personagens, cidades, temas: unidos talvez por uma persistente sensação de teatro do absurdo, no qual palestinos oprimidos e israelenses opressores têm de atuar por imposição, em que a única saída satisfatória é a fantasia. Como na cena de uma guerreira ninja palestina, lindíssima, enfrentando o poderoso Exército israelense com dardos e piruetas no ar. Ou na do balão com a imagem do líder palestino Iasser Arafat cruzando o "checkpoint" israelense impunemente, para desespero dos soldados.
A ocupação brutaliza palestinos e israelenses. E a melhor forma de acabar com ela é criar empatia de ambos os lados pelo sofrimento da outra parte. O documentário israelense, financiado por israelenses, produzido por israelenses, exibido a israelenses, cumpre essa função. O filme palestino, não.
Israel é uma democracia, e o exercício da crítica, em todos os níveis, é o esporte nacional. Além de "Checkpoint", há inúmeros filmes, programas de TV, reportagens, livros e grupos dedicados a moderar as posições israelenses justamente divulgando o sofrimento extremo que as políticas do país causam aos palestinos.
Já do lado palestino, é praticamente impossível exercer qualquer tipo de autocrítica ou empatia em relação aos civis israelenses mortos em ataques suicidas. No ano passado, um grupo de intelectuais e políticos palestinos publicou uma corajosa carta aberta na mídia palestina questionando os métodos brutais e ineficientes da Intifada (a revolta palestina iniciada em setembro de 2000, após o colapso do processo de paz). Sofreram enorme repúdio, e muitos se retrataram.
Parece inconcebível que um cineasta palestino faça algo comparável ao que Shamir fez em seu "Checkpoint". Como seria interessante, por exemplo, se Suleiman filmasse a devastação causada pelos terroristas suicidas que se explodem em todas as instâncias da vida israelense -um contato cotidiano com outro tipo de opressão, também apavorante.
A resposta para o conflito parece clara a todos. Condenados à convivência por simples determinismo geográfico, israelenses e palestinos devem ter Estados nacionais baseados nas fronteiras pré-1967. Pesquisas apontam que maiorias dos dois lados apóiam essa solução para um conflito central que o século 20 vergonhosamente legou ao século 21.
O cinema é uma poderosa arma política. Pelo menos por alguns minutos, "Checkpoint" e "Intervenção Divina" estimularão seus espectadores a refletirem sobre a incessante carnificina árabe-israelense. Meu conselho é que o façam de forma equilibrada e fujam do maniqueísmo. Quanto mais longe dele, mais perto da solução.

CHECKPOINT - POSTO DE CONTROLE. De: Yoav Shamir. Israel, 2003. Quando: sexta, às 20h30 (para convidados), e sábado, às 17h, no Cinesesc; grátis.

INTERVENÇÃO DIVINA. De: Elia Suleiman. França/Marrocos/Alemanha/ Palestina, 2002. Quando: a partir de sexta nos cinemas de São Paulo.



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