|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/modernismo
Oswald de Andrade reinventa a história em seu dicionário
Verbetes, que não seguem uma seqüência cronológica certa e nem rígida, definem nomes importantes e figuras históricas a partir de um viés comunista
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Estamos em tempo de
muros. Atrás deles,
blindados em insulfilmes, cercas, grades, condomínios fechados, protegidos por
uma segurança que só faz aumentar o abismo entre nós e a
causa do nosso medo, assim
ampliando cada vez mais essas
mesmas causas. Ou então, em
cima dos muros, calados, prudentes, "moitas". Nosso silêncio não é sábio, é medroso. Lavamos as mãos e sonhamos
com punições terríveis a quem
chamamos de culpados.
Oswald de Andrade não ficava atrás nem em cima dos muros. Colocava-se à frente deles,
dava a cara à tapa, o nome aos
bois. Seu "Dicionário de Bolso",
lançado recentemente, é uma
lembrança feliz de como são
possíveis outras maneiras de
pensar e criar a história. Inventar uma história por rasgos, por
saltos, subjetiva e bem humorada, como uma colagem. Em
seu pequeno "Dicionário...",
Oswald remonta o passado e
agora, para nós, ele próprio faz
parte do passado. É preciso lê-lo da mesma maneira como ele
lia e construía a sua história.
Seu dicionário não é neutro e
nisso ele acaba contradizendo a
própria idéia de dicionário. São
verbetes que definem alguns
nomes importantes da história
ocidental e brasileira, a partir
de um viés escancaradamente
comunista.
"Forder-se"
Dessa forma, lemos que
Caim é "o primeiro burguês",
que "demarcou a terra e fez a
primeira cerca da história";
Isaías é autor de uma "imprecação bolchevista"; Judas é "um
intelectual pequeno-burguês";
Giordano Bruno é "o anarquista do humanismo", José do Patrocínio é um "negro vendido"
e Ford é "o criador do neologismo "forder-se'".
A ordem dos verbetes parece
seguir uma seqüência cronológica, mas não há nada de rigoroso nela. Por que Balzac e não
Flaubert, por que Léger e não
Picasso? Não se sabe. A aleatoriedade faz parte da idéia do total arbítrio do autor; as coisas
são assim porque Oswald constrói seu mundo dessa maneira:
explícita e arbitrariamente, incluindo as bobagens que possam escapar no meio.
É importante, também, levar
a sério o humor de Oswald de
Andrade. Não são somente tiradas bem sacadas que compõem folcloricamente a lenda
do modernista inconseqüente.
Ao contrário, seu humor tem a
responsabilidade de se expor,
rir de si mesmo e de dissolver
os nexos rígidos entre as coisas,
como deve fazer todo humor de
qualidade.
Necessidades de ação
Deve-se sempre desconfiar
de elos muito inflexíveis e, seguindo as palavras do próprio
Oswald de Andrade, tão bem
comentado pela organizadora
Maria Eugênia Boaventura,
"atacar com saúde os crepúsculos de uma classe dominante
não é de modo algum ser pouco
sério. O sarcasmo, a cólera e até
o distúrbio são necessidades de
ação, principalmente nas eras
do caos, quando a vasa sobe, a
subliteratura trona e os poderes infernais se apossam do
mundo em clamor". Mal sabia
ele que o "mundo em clamor"
se calaria e subiria para cima a
para trás dos muros.
DICIONÁRIO DE BOLSO
Autor: Oswald de Andrade
Editora: Globo
Quanto: R$ 27 (124 págs.)
Avaliação: Ótimo
Leia trecho
Texto Anterior: Cinema: Presidente do Irã ataca filme com Santoro Próximo Texto: Livros: Revista britânica "Granta" lista 21 revelações das letras dos EUA Índice
|