São Paulo, sábado, 24 de março de 2007

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Crítica/modernismo

Oswald de Andrade reinventa a história em seu dicionário

Verbetes, que não seguem uma seqüência cronológica certa e nem rígida, definem nomes importantes e figuras históricas a partir de um viés comunista

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Estamos em tempo de muros. Atrás deles, blindados em insulfilmes, cercas, grades, condomínios fechados, protegidos por uma segurança que só faz aumentar o abismo entre nós e a causa do nosso medo, assim ampliando cada vez mais essas mesmas causas. Ou então, em cima dos muros, calados, prudentes, "moitas". Nosso silêncio não é sábio, é medroso. Lavamos as mãos e sonhamos com punições terríveis a quem chamamos de culpados.
Oswald de Andrade não ficava atrás nem em cima dos muros. Colocava-se à frente deles, dava a cara à tapa, o nome aos bois. Seu "Dicionário de Bolso", lançado recentemente, é uma lembrança feliz de como são possíveis outras maneiras de pensar e criar a história. Inventar uma história por rasgos, por saltos, subjetiva e bem humorada, como uma colagem. Em seu pequeno "Dicionário...", Oswald remonta o passado e agora, para nós, ele próprio faz parte do passado. É preciso lê-lo da mesma maneira como ele lia e construía a sua história.
Seu dicionário não é neutro e nisso ele acaba contradizendo a própria idéia de dicionário. São verbetes que definem alguns nomes importantes da história ocidental e brasileira, a partir de um viés escancaradamente comunista.

"Forder-se"
Dessa forma, lemos que Caim é "o primeiro burguês", que "demarcou a terra e fez a primeira cerca da história"; Isaías é autor de uma "imprecação bolchevista"; Judas é "um intelectual pequeno-burguês"; Giordano Bruno é "o anarquista do humanismo", José do Patrocínio é um "negro vendido" e Ford é "o criador do neologismo "forder-se'".
A ordem dos verbetes parece seguir uma seqüência cronológica, mas não há nada de rigoroso nela. Por que Balzac e não Flaubert, por que Léger e não Picasso? Não se sabe. A aleatoriedade faz parte da idéia do total arbítrio do autor; as coisas são assim porque Oswald constrói seu mundo dessa maneira: explícita e arbitrariamente, incluindo as bobagens que possam escapar no meio.
É importante, também, levar a sério o humor de Oswald de Andrade. Não são somente tiradas bem sacadas que compõem folcloricamente a lenda do modernista inconseqüente.
Ao contrário, seu humor tem a responsabilidade de se expor, rir de si mesmo e de dissolver os nexos rígidos entre as coisas, como deve fazer todo humor de qualidade.

Necessidades de ação
Deve-se sempre desconfiar de elos muito inflexíveis e, seguindo as palavras do próprio Oswald de Andrade, tão bem comentado pela organizadora Maria Eugênia Boaventura, "atacar com saúde os crepúsculos de uma classe dominante não é de modo algum ser pouco sério. O sarcasmo, a cólera e até o distúrbio são necessidades de ação, principalmente nas eras do caos, quando a vasa sobe, a subliteratura trona e os poderes infernais se apossam do mundo em clamor". Mal sabia ele que o "mundo em clamor" se calaria e subiria para cima a para trás dos muros.


DICIONÁRIO DE BOLSO
Autor:
Oswald de Andrade
Editora: Globo
Quanto: R$ 27 (124 págs.)
Avaliação: Ótimo

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