|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NELSON ASCHER
O grande desconversador
É quase certo que Obama
não compartilha dos
dogmas desvairados da teologia da libertação negra
A IRRESISTÍVEL ascensão de Barack H. Obama (o "H" é de
Hussein, nome que, num
consenso tácito, tornou-se impronunciável, como se sua menção fosse um golpe baixo) deparou-se, nas
duas últimas semanas, com seus primeiros obstáculos sérios. Embora
quem freqüentasse blogs especializados já soubesse não só de sua associação com o reverendo Jeremiah
Wright, como do caráter pernicioso
deste, para a maioria dos americanos foi uma surpresa assistir, na TV,
ao mentor espiritual do provável
candidato democrata à presidência
dos EUA proferindo sermões nos
quais vituperava contra a América.
Se muitos ao redor do mundo endossariam tais palavras, convém
lembrar que, no país em questão,
identificar-se com elas não é necessariamente boa propaganda eleitoral. Compelido a debelar uma crise
que tentativas iniciais de negar e
mudar de assunto não bastaram para abafar, Obama adotou outra estratégia e apresentou um discurso
centrado no tema que, não obstante
subjazer onipresente à sua campanha, ele conseguira evitar que viesse
verbalmente à tona. Trata-se do tema da raça, das relações raciais.
O discurso, saudado por seus entusiastas (a mídia e a intelectualidade) como superior aos de Martin Luther King e comparável aos de Abraham Lincoln, mereceu, de observadores menos hipnotizados, juízos
mais cautelosos, pois, escrita e apresentada por um brilhante advogado
de Harvard cujo carisma e oratória
nem inimigos questionam, a fala revela-se antes uma obra-prima da
evasão e da desconversa. O veredicto final não saiu, mas ficou patente
que, para o senador de Illinois, abolir o passado será mais difícil do que
suprimir seu nome do meio.
Se usei acima os termos "raça" e
"relações raciais" em vez de racismo
é porque este, marcante nos EUA
até os anos 50/60, converteu-se, por
causa do movimento de direitos civis, no problema residual e confinado a grupos isolados que atualmente
é. A marginalização discriminatória
e opressiva de uma minoria étnica
por uma maioria cruel ou indiferente, ou seja, o que se chama de racismo, deixou de ser o âmago das relações entre brancos e negros americanos. O que se vê agora pode ser
descrito melhor como balcanização:
uma justaposição de duas (na realidade, muitas) culturas que coexistem sem conviver nem se mesclar
inteiramente, e isto por vontade
mútua.
É quase certo que Obama não
compartilha dos dogmas desvairados da teologia da libertação negra
que seu pastor professa. Ele, no entanto, com o intuito de criar e consolidar uma base política em Chicago,
deixou-se associar à igreja da Santíssima Trindade (Trinity Church),
nem poderia, a esta altura, rejeitá-la
convincentemente, ainda mais porque sua visão de mundo lhe favorece
a campanha. O que gente como
Wright proclama é que, sob formas
diferentes, tanto a escravidão quanto o racismo continuam a definir a
nação e todos os brancos são culpados até prova em contrário. O mínimo que lhes cabe fazer, portanto, é
compensar material e simbolicamente suas vítimas. Eleger Obama
seria um bom começo, e milhões de
eleitores imbuídos de má consciência adquirida dispõem-se a aceitar o
acordo.
Eis o que uma assessora (logo demitida) de Hillary Clinton quis dizer
ao apontar que o candidato se beneficiava da cor de sua pele. Mesmo assim, não é a questão racial que está
no centro de sua candidatura: ela
não passa de seu trunfo mais ostensivo e, de fato, colabora com a desconversa que permite ao senador,
lançando mão de slogans vazios como "mudança" e "esperança", não
explicitar seu ideário constituído
das propostas convencionais da esquerda democrata. Assim, uma vontade generalizada de expiar a história nacional e a capacidade de maquiar idéias de apelo restrito elevaram um novato mal conhecido e
com escassas realizações à posição
em que se encontra.
Nada disso, contudo, teria sido suficiente se o quadro geral não lhe
fosse propício. Uma vez que oito
longos anos no poder e a Guerra do
Iraque pareciam assegurar a derrota
dos rivais, os democratas não julgavam necessário oferecer um candidato competitivo. Daí terem desde
cedo coroado outra novata cuja carreira era um subproduto do sucesso
de seu marido presidente. Obama,
percebendo o segredo de polichinelo que era a fragilidade de Hillary,
entendeu que não seria impossível
batê-la nas primárias do partido. E
nenhum dos dois imaginava que estas acabariam sendo mais trabalhosas talvez do que a própria eleição. O
resultado imediato desse duplo erro
de cálculo é uma disputa interna
que, ameaçando ambas as candidaturas, bem como o partido, de implosão, tornou plausível algo ainda
há pouco impensável: uma vitória
republicana.
Texto Anterior: Crítica/cinema/"Delírios": Comédia satiriza mundo das celebridades Próximo Texto: Cinema: Folha Documenta exibe "Serras da Desordem" Índice
|