São Paulo, domingo, 24 de abril de 2005

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TV PAGA

Com depoimentos de sobreviventes do Holocausto, documentário é apresentado de terça a sexta em canal francês

Lanzmann propõe tempo "da verdade" em "Shoah"

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

O problema que "Shoah" coloca ao público brasileiro hoje não é de ordem ética nem política. Este filme monumental, que a TV5 começa a mostrar na terça, às 21h20, sem legendas, constitui um desafio antes de mais nada estético.
Isto é: será que esse espectador, massacrado por 40 anos de domínio da TV sobre o imaginário brasileiro, conseguirá apreender o ritmo tão particular que Claude Lanzmann imprimiu a seu documentário sobre o Holocausto?
A cada dia, nos telejornais ou nos documentários de TV, somos confrontados a uma noção particular de tempo: tudo tem de ser rápido e "interessante" -sob pena de perder audiência.
Lanzmann não está preocupado com a audiência, mas com a verdade. Para começar, fez um filme com nove horas de duração, o que desafia qualquer critério comercial do mundo do cinema.
Mas não creio que isso seja o essencial em seu raciocínio. Lanzmann sabe que a imagem de cinema existe, em princípio, no mundo das aparências. Essas pessoas que aparecem na TV não são mais do que fantasmas desse nosso mundo veloz. E Lanzmann sabe, também, que a verdade é uma questão ligada ao tempo. Ela não está nos videoclipes, de modo geral. Ela emerge do tempo.
Nessa medida, seus entrevistados parecem dispor de todo o tempo do mundo. O entrevistador também: é preciso que escute as respostas, raciocine, lance a questão seguinte. O raciocínio é o xis da questão, pois é ele que conduz a curiosidade dos batidos clichês para a observação luminosa.
Já disse que "Shoah" é sobre o Holocausto. Ou melhor, Shoah quer dizer Holocausto, e é esse fenômeno que o filme virará pelo avesso: de Auschwitz a Treblinka, do extermínio quase "artesanal" dos caminhões de gás à produção da morte em massa, do Gueto de Varsóvia à "solução final", dos judeus poloneses aos gregos.
O filme não é feito senão com depoimentos de sobreviventes da guerra. E isso enfatiza a necessidade de deter-se sobre esses rostos. Eles lembram. Lembram coisas com as quais é impossível conviver, fatos que não gostariam jamais de recordar. É preciso dar-lhes tempo para que a verdade apareça. E ela surge aos poucos, mas com a violência das coisas evidentes. Chega pelas palavras, pelo tom de voz de cada um.
Lanzmann é implacável com seus entrevistados, judeus ou não: esses homens fazem parte da história, e "Shoah" trata de resgatar uma história ao mesmo tempo secreta e evidente. Ou antes: trata de transformar de uma vez o segredo em evidência. Pois é a evidência dos fatos que emerge daquelas palavras. É para além da linguagem que a verdade se define. A linguagem é, justamente, o instrumento da mentira, que precisa ser torcido e retorcido para revelar o que há por trás das palavras.
"Shoah" é um filme monumental, por certo, e uma obra-prima, não há dúvida. Não apenas porque cumpre seu objetivo plenamente como porque tem a capacidade de deixar seus espectadores pregados na cadeira, como se assistissem a um filme de suspense, tal o fascínio que existe não só naquilo que se conta, como nessa lenta e delicada escansão que permite à verdade dos fatos emergir.
Tomemos, por exemplo, uma seqüência numa aldeia polonesa: o único sobrevivente das deportações que havia em Chelmo (no "castelo", primeiro, na igreja, depois) posa como numa foto de família com as pessoas da aldeia, que ainda se lembram dele.
No início, há afagos e palavras amigas. No fim, o veredicto que fala sobre o insuportável anti-semitismo polonês: os judeus foram os culpados de sua morte porque, afinal, mataram Jesus Cristo.
Dito assim não é muito impressionante, creio. Ver a lenta transformação dos bons sentimentos em indisfarçado ódio racial é.
"Shoah" coloca um problema estético, pois já não estamos acostumados a um tempo lento. Seria de extremo mau gosto aproximar o Holocausto do massacre cultural a que somos submetidos hoje. Mas nunca é demais lembrar que, para dizimar os judeus, os nazistas souberam, antes, esterilizar a cultura e suprimir a informação.


Shoah
Quando: dos dias 26 a 29, às 21h20, no canal TV5 (sem legendas em português)



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