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TV PAGA
Com depoimentos de sobreviventes do Holocausto, documentário é apresentado de terça a sexta em canal francês
Lanzmann propõe tempo "da verdade" em "Shoah"
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
O problema que "Shoah" coloca
ao público brasileiro hoje não é de
ordem ética nem política. Este filme monumental, que a TV5 começa a mostrar na terça, às 21h20,
sem legendas, constitui um desafio antes de mais nada estético.
Isto é: será que esse espectador,
massacrado por 40 anos de domínio da TV sobre o imaginário brasileiro, conseguirá apreender o
ritmo tão particular que Claude
Lanzmann imprimiu a seu documentário sobre o Holocausto?
A cada dia, nos telejornais ou
nos documentários de TV, somos
confrontados a uma noção particular de tempo: tudo tem de ser
rápido e "interessante" -sob pena de perder audiência.
Lanzmann não está preocupado com a audiência, mas com a
verdade. Para começar, fez um filme com nove horas de duração, o
que desafia qualquer critério comercial do mundo do cinema.
Mas não creio que isso seja o essencial em seu raciocínio. Lanzmann sabe que a imagem de cinema existe, em princípio, no mundo das aparências. Essas pessoas
que aparecem na TV não são mais
do que fantasmas desse nosso
mundo veloz. E Lanzmann sabe,
também, que a verdade é uma
questão ligada ao tempo. Ela não
está nos videoclipes, de modo geral. Ela emerge do tempo.
Nessa medida, seus entrevistados parecem dispor de todo o
tempo do mundo. O entrevistador também: é preciso que escute
as respostas, raciocine, lance a
questão seguinte. O raciocínio é o
xis da questão, pois é ele que conduz a curiosidade dos batidos clichês para a observação luminosa.
Já disse que "Shoah" é sobre o
Holocausto. Ou melhor, Shoah
quer dizer Holocausto, e é esse fenômeno que o filme virará pelo
avesso: de Auschwitz a Treblinka,
do extermínio quase "artesanal"
dos caminhões de gás à produção
da morte em massa, do Gueto de
Varsóvia à "solução final", dos judeus poloneses aos gregos.
O filme não é feito senão com
depoimentos de sobreviventes da
guerra. E isso enfatiza a necessidade de deter-se sobre esses rostos. Eles lembram. Lembram coisas com as quais é impossível conviver, fatos que não gostariam jamais de recordar. É preciso dar-lhes tempo para que a verdade
apareça. E ela surge aos poucos,
mas com a violência das coisas
evidentes. Chega pelas palavras,
pelo tom de voz de cada um.
Lanzmann é implacável com
seus entrevistados, judeus ou não:
esses homens fazem parte da história, e "Shoah" trata de resgatar
uma história ao mesmo tempo secreta e evidente. Ou antes: trata de
transformar de uma vez o segredo
em evidência. Pois é a evidência
dos fatos que emerge daquelas
palavras. É para além da linguagem que a verdade se define. A
linguagem é, justamente, o instrumento da mentira, que precisa ser
torcido e retorcido para revelar o
que há por trás das palavras.
"Shoah" é um filme monumental, por certo, e uma obra-prima,
não há dúvida. Não apenas porque cumpre seu objetivo plenamente como porque tem a capacidade de deixar seus espectadores
pregados na cadeira, como se assistissem a um filme de suspense,
tal o fascínio que existe não só naquilo que se conta, como nessa
lenta e delicada escansão que permite à verdade dos fatos emergir.
Tomemos, por exemplo, uma
seqüência numa aldeia polonesa:
o único sobrevivente das deportações que havia em Chelmo (no
"castelo", primeiro, na igreja, depois) posa como numa foto de família com as pessoas da aldeia,
que ainda se lembram dele.
No início, há afagos e palavras
amigas. No fim, o veredicto que
fala sobre o insuportável anti-semitismo polonês: os judeus foram
os culpados de sua morte porque,
afinal, mataram Jesus Cristo.
Dito assim não é muito impressionante, creio. Ver a lenta transformação dos bons sentimentos
em indisfarçado ódio racial é.
"Shoah" coloca um problema
estético, pois já não estamos acostumados a um tempo lento. Seria
de extremo mau gosto aproximar
o Holocausto do massacre cultural a que somos submetidos hoje.
Mas nunca é demais lembrar que,
para dizimar os judeus, os nazistas souberam, antes, esterilizar a
cultura e suprimir a informação.
Shoah
Quando: dos dias 26 a 29, às 21h20, no
canal TV5 (sem legendas em português)
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