São Paulo, sexta, 24 de abril de 1998

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CINEMA ESTRÉIAS
"Boleiros" aborda a fugacidade do tempo

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

"Boleiros" se passa em dois níveis: o do presente e o da memória. No presente, existe um grupo de ex-jogadores de futebol que conversa em torno de uma mesa de bar.
Esses ex-jogadores contam uns aos outros histórias tristes ou alegres, cômicas ou dramáticas, sobre o mundo do futebol.
Pode-se pensar, num primeiro momento, que a mesa de bar é um artifício criado pelo diretor Ugo Giorgetti para alinhavar os casos que vão sendo desfiados.
Na verdade não é bem assim. "Boleiros" é um filme sobre futebol, sim, mas não o futebol jogado, e sim o futebol falado. Seu princípio é que o jogo não se passa tanto nos 90 minutos ditos regulamentares, e sim depois deles: quando se comentam os lances, fala-se do juiz ladrão, da sorte e do azar de cada time, da atuação de cada craque etc.
Se se limitasse a isso, porém, "Boleiros" seria um filme dirigido apenas a esportistas fanáticos -o que não é o caso.
Se Giorgetti escolheu a mesa de bar como cenário central é porque ela lhe abre a possibilidade de ampliar a dimensão de seu filme.
Ao todo são seis histórias. A primeira diz respeito a um juiz ladrão. Há também a do professor de uma escolinha de futebol que descobre num menino de rua um craque em potencial. Outra é a do ex-jogador de seleção que hoje vive numa favela.
Numa quarta, um jovem craque é pilhado no dia em que faz uma grande partida e tem seu passe negociado com a Itália. Há ainda a do grupo de Gaviões da Fiel que descobre um método pouco ortodoxo de curar a crônica contusão de seu craque preferido. Por fim, há o caso do jogador que tapeia o técnico durão para transar com uma dona que aparece na concentração.
Por significativas que sejam, essas histórias são necessariamente aleatórias, uma amostragem entre milhares de casos possíveis.
O que estrutura o filme narrativamente e orienta sua mise-en-scène é a mesa de bar. Isto é, os casos não são narrados por um diretor de cinema, por um filme, mas pelos ex-jogadores.
A memória não vem do nada. Cada caso resume um movimento do correr irremediável do tempo.
É na mesa do bar que, quase inadvertidamente, desenrolam-se o verdadeiro drama e a verdadeira trama do filme, pois, ao falar dos outros, cada um daqueles homens pensa em si mesmo.
Um deles (Adriano Stuart), o condutor do papo, é um ex-jogador da seleção inconformado com sua função de professor de uma escolinha para filhinhos de papai. Outro, um técnico que ainda hoje, quando sonha, sonha que está em campo. Um terceiro, um lateral que já jogou na seleção e atualmente vende persianas a domicílio.
Não se pode esquecer, claro, de Flávio Migliaccio, o emotivo ex-craque que, ao ver suas fotos na parede, não se reconhece e imagina que tudo aquilo não aconteceu realmente consigo, mas com outra pessoa.
Existe, em suma, uma sutil degradação que o tempo opera sobre as pessoas -quaisquer que sejam.
Os atletas são apenas seres privilegiados para que se mostre essa degradação, na medida em que sua vida útil é infinitamente mais curta e turbulenta do que a de nós outros, paisanos. Eles podem passar do anonimato à glória em semanas e, com a mesma rapidez, regredir à mais completa mediocridade.
Podem transitar da pobreza à riqueza. Não raro, percorrem o caminho inverso com a mesma facilidade. Ou seja: se o futebol e os futebolistas fornecem o tema explícito a "Boleiros", existe ali um filme mais secreto, que se pode chamar, para resumir, drama do tempo. Nele incluem-se a fugacidade do instante e a permanência da memória, o fato e o registro, o real e o sonhado.
É da articulação entre o explícito e o implícito, o evidente e o secreto que surge a beleza melancólica, e por vezes muito forte desta quase comédia.


Filme: Boleiros Produção: Brasil, 1998 Direção: Ugo Giorgetti Com: Adriano Stuart, Flávio Migliaccio, Otávio Augusto, Denise Fraga, André Abujamra, Lima Duarte, Marisa Orth Quando: a partir de hoje, nos cines Estação Lumière 2, Espaço Unibanco 2 e circuito
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