São Paulo, quarta-feira, 24 de maio de 2000


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MÚSICA ERUDITA

Filarmônica de Berlim toca vida e morte de Mahler

ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A música veio do nada: o maestro Abbado imóvel, a orquestra calada por um longo tempo, tocando silêncio. E a música se foi no silêncio também: o maestro parado, a orquestra sem dar um respiro, até o primeiro aplauso, que abriu as comportas da ovação. Entre um e outro infinito, a Orquestra Filarmônica de Berlim tocou tudo e nada, a vida e a morte de Gustav Mahler (1860-1911), reencenada no Municipal, numa noite de segunda-feira.
Não se pode falar da música de Mahler sem falar de conceitos como memória, experiência, esperança, exílio. A sinfonia está para a música como o romance de Proust para a literatura. Que isso se traduza em ritmos e melodias é outro modo de ver como a "Nona" anuncia a música nova. Não é qualquer orquestra que consegue dar conta simplesmente de achar seu caminho na vertigem da sinfonia, esses 75 minutos de música total. A Filarmônica vai além.
Que ela toque com precisão, energia, intensidade e sentido de conjunto é o mínimo que se espera. O mínimo da Filarmônica já seria o máximo de qualquer boa orquestra; e, no concerto de segunda, ela não chegou a mostrar o que pode ser o seu máximo. Espremida no palco, diminuída pela acústica, encabulada pelo range-range da platéia, a Filarmônica tocou Mahler mesmo assim. Não foi o máximo, mas foi, talvez, o possível nas circunstâncias do Teatro Municipal.
O maestro Claudio Abbado, a um ano de se aposentar, mostra-se tão inteiramente senhor da música que dá pena pensar nesse como o último Mahler à frente da orquestra no Brasil. Mahler é o compositor da experiência e demanda um maestro da experiência. As ironias e paródias, as acelerações e fulgurações da vida em carrossel, a transformação da banalidade em abstração, as visões de felicidade passada, que a música encena variadamente nessa grande sinfonia-romance, tudo isso é matéria de vida para o regente também.
É a música no limite, para um regente capaz não só de acompanhá-la, mas de moldá-la da perspectiva de quase um século depois: um século de música. Stravinski e Schoenberg têm papel no Mahler de Abbado, em especial, acrescentando cargas novas a essa música que é, ao mesmo tempo, do passado e do futuro da modernidade. Mas nada impressiona tanto em Abbado, que toca tudo de memória, quanto a própria noção da memória, memória humana preenchendo a música e capaz até, no final, de inverter o seu sentido e narrar a própria morte.
Em outras circunstâncias, teria sido, talvez, um concerto inigualável. Impressionante como foi, não chegou a ser o que poderia; seja pelo teatro, pela platéia, seja por outros mistérios do destino.
A intensidade das cordas de Berlim é inesquecível; a inteligência da orquestra é um dos pontos altos da civilização; essa música diz tudo e nos deixa, agora, entregues ao que se passa entre um silêncio e outro, nos extremos da sinfonia. Com tudo isso, faltou a explosão última, ou o conhecimento último, que essa música guarda, os músicos guardam com eles, e Abbado só pôde fazer vislumbrar, em momentos de clarividência, nesse concerto maravilhoso e oblíquo.
Concerto: Sinfonia nº 9, Mahler      Com: Orquestra Filarmônica de Berlim Regente: Claudio Abbado Onde: Teatro Municipal de São Paulo (pça. Ramos de Azevedo, s/ nº; tel. 0/xx/ 11/223-3022) Quando: hoje, às 21h


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