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MÚSICA ERUDITA
Filarmônica de Berlim toca vida e morte de Mahler
ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
A música veio do nada: o
maestro Abbado imóvel, a
orquestra calada por um longo
tempo, tocando silêncio. E a música se foi no silêncio também: o
maestro parado, a orquestra sem
dar um respiro, até o primeiro
aplauso, que abriu as comportas
da ovação. Entre um e outro infinito, a Orquestra Filarmônica de
Berlim tocou tudo e nada, a vida e
a morte de Gustav Mahler (1860-1911), reencenada no Municipal,
numa noite de segunda-feira.
Não se pode falar da música de
Mahler sem falar de conceitos como memória, experiência, esperança, exílio. A sinfonia está para
a música como o romance de
Proust para a literatura. Que isso
se traduza em ritmos e melodias é
outro modo de ver como a "Nona" anuncia a música nova. Não é
qualquer orquestra que consegue
dar conta simplesmente de achar
seu caminho na vertigem da sinfonia, esses 75 minutos de música
total. A Filarmônica vai além.
Que ela toque com precisão,
energia, intensidade e sentido de
conjunto é o mínimo que se espera. O mínimo da Filarmônica já
seria o máximo de qualquer boa
orquestra; e, no concerto de segunda, ela não chegou a mostrar o
que pode ser o seu máximo. Espremida no palco, diminuída pela
acústica, encabulada pelo range-range da platéia, a Filarmônica tocou Mahler mesmo assim. Não foi
o máximo, mas foi, talvez, o possível nas circunstâncias do Teatro
Municipal.
O maestro Claudio Abbado, a
um ano de se aposentar, mostra-se tão inteiramente senhor da
música que dá pena pensar nesse
como o último Mahler à frente da
orquestra no Brasil. Mahler é o
compositor da experiência e demanda um maestro da experiência. As ironias e paródias, as acelerações e fulgurações da vida em
carrossel, a transformação da banalidade em abstração, as visões
de felicidade passada, que a música encena variadamente nessa
grande sinfonia-romance, tudo
isso é matéria de vida para o regente também.
É a música no limite, para um
regente capaz não só de acompanhá-la, mas de moldá-la da perspectiva de quase um século depois: um século de música. Stravinski e Schoenberg têm papel no
Mahler de Abbado, em especial,
acrescentando cargas novas a essa
música que é, ao mesmo tempo,
do passado e do futuro da modernidade. Mas nada impressiona
tanto em Abbado, que toca tudo
de memória, quanto a própria noção da memória, memória humana preenchendo a música e capaz
até, no final, de inverter o seu sentido e narrar a própria morte.
Em outras circunstâncias, teria
sido, talvez, um concerto inigualável. Impressionante como foi,
não chegou a ser o que poderia;
seja pelo teatro, pela platéia, seja
por outros mistérios do destino.
A intensidade das cordas de
Berlim é inesquecível; a inteligência da orquestra é um dos pontos
altos da civilização; essa música
diz tudo e nos deixa, agora, entregues ao que se passa entre um silêncio e outro, nos extremos da
sinfonia. Com tudo isso, faltou a
explosão última, ou o conhecimento último, que essa música
guarda, os músicos guardam com
eles, e Abbado só pôde fazer vislumbrar, em momentos de clarividência, nesse concerto maravilhoso e oblíquo.
Concerto: Sinfonia nº 9, Mahler
Com: Orquestra Filarmônica de Berlim
Regente: Claudio Abbado
Onde: Teatro Municipal de São Paulo
(pça. Ramos de Azevedo, s/ nº; tel. 0/xx/
11/223-3022)
Quando: hoje, às 21h
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