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MARCELO COELHO
"Gladiador" é um filme detestável, cínico e desonesto
Os romanos voltaram. Depois de 40 anos de descrédito, surge nos cinemas um filme
"épico", no estilo das aventuras
de Ben-Hur, Maciste, Spartacus e
companhia. É, como todo mundo
sabe, "Gladiador", de Ridley
Scott, com Russell Crowe no papel
principal.
Depois de enfrentar a indústria
tabagista em "O Informante",
nosso herói assume o papel de um
general romano. Por pouco tempo. Escravizam-no. Torna-se gladiador em arenas mambembes.
Seu talento é tamanho que obtém
sucesso em Roma. Quer vingar-se
do imperador. Luta, como todo
escravo americano, por justiça.
Não conto mais do filme. É um
produto violento, cínico e enfático, lacrimoso, kitsch e desonesto.
O diabo é que a máquina da propaganda hollywoodiana funciona mais uma vez. Dá vontade de
ver "Gladiador", e a gente vai ver
não porque sinta falta de corridas
de biga e homens de saiote, mas
porque Hollywood sente falta disso e, então, mobiliza sua máquina publicitária.
A revista "Veja" dedicou páginas e páginas à proeza colossal de
"Gladiador". Se não era propaganda, a matéria funcionou como se fosse.
Talvez a burrice seja empolgante. Voltar às cenas de gladiadores
equivaleria, para o crítico que
gosta de "Batman", de "Star
Trek" e deste último golpe de
Hollywood, a um reencontro com
a inocência perdida. Logo, quanto mais inocente for o filme, melhor: elogiá-lo constará como
atestado de pureza, como suave
infantilismo por parte do crítico.
Acontece que "Gladiador" não
é um filme inocente nem "pura
diversão", frase que funciona como pretexto para quem quer idiotizar-se sem culpa.
O crítico Roland Barthes escreveu, nos idos de 50, um artigo
muito agudo sobre os romanos no
cinema. Analisava o "Júlio César"
de Mankiewicz. Implicou com as
franjinhas que todo ator usava.
Para Roland Barthes, aquelas
franjinhas na testa não eram
"reais". Todo ator, mesmo sem
muito cabelo, usava franjinhas
porque, na pobre mentalidade de
Hollywood, aquilo era um signo
da "romanidade". Um filme convencional como o de Mankiewicz
estava obrigado a dizer, todo o
tempo, que a história se passava
em Roma, na época dos césares. O
estereótipo era ridículo; cada
franja funcionava como placa de
trânsito, indicando que tudo era
"romano".
Hollywood sofisticou-se bastante desde que Barthes escreveu esse
artigo. Hoje em dia, os estereótipos lamentáveis de "Gladiador",
suas franjinhas e sua "romanidade" deixam de referir-se a uma
"Roma" de manual de história.
Referem-se à "Roma" de Hollywood. "Gladiador" repete os clichês do cinema "épico", aludindo
ao passado do próprio cinema.
Usa tons de sépia, joga com o preto-e-branco, numa indicação de
que sabe o quanto de "retrô" está
pondo em cena.
Como se soubesse das críticas de
Barthes, "Gladiador" americaniza brutalmente a cena romana.
Russell Crowe é pouco mais do
que um homem de Marlboro,
nostálgico de sua pequena fazenda no Meio-Oeste dos EUA, onde
correm cavalos pelos descampados. Sua motivação vingativa é a
de um caubói; tudo é americaníssimo nesse filme que ironiza por
conta própria a "romanidade"
denunciada por Barthes em tempos mais inocentes.
As flechas incendiárias contra
os bárbaros, velocíssimas, evocam
os mísseis da guerra do Iraque pela CNN. O problema de Russell
Crowe é menos o de vencer a luta
contra os bárbaros do que o de
conquistar o público do Coliseu.
Já em Roma, portanto, predominava a sociedade do espetáculo.
Mais vale ser simpático à platéia
do que cuidar da saúde republicana.
Lutar por Roma, diz alguém no
filme, "é lutar por uma idéia...".
Nada mais coerente com os bombardeios e intervenções do império americano. "Gladiador" tenta
conciliar as figuras do civismo
imperial com o belicismo "heróico" de uma América que se esquece do Vietnã.
Como ninguém mais acredita
na inocência americana, esse filme faz ironia aos velhos épicos de
Hollywood. Mas sua ironia reafirma, de modo odioso, os "valores"
-justiça, democracia- em torno dos quais está a girar o mais
louco, o mais fantasioso, o mais
benigno e nocivo sistema de dominação sobre o mundo.
Nesse sentido, é um filme ambíguo. Defende ideais republicanos,
jeffersonianos, fundados na virtude do pequeno agricultor. Esses se
traduzem vagamente numa
"grandeza de Roma", numa
"idéia de Roma", que Russell Crowe defende com sanguinolência.
O lado bélico e idealista do filme
contrasta, todavia, com os recursos do cinismo e da alusão.
Tudo se torna irônico quando
os próprios romanos estão conscientes de que tudo é espetáculo,
de que tudo é pão e circo e de que
conquistar midiaticamente a plebe romana, por meio de heroísmos na arena, significa a salvação do herói e da cidade.
O filme se fecha, assim, na própria glorificação do cinema, do
espetáculo. A falsidade denunciada por Roland Barthes se torna
verdade. "É mentira mesmo": eis
o que afirma galhardamente essa
superprodução. A "América"
sempre será uma idéia democrática, a ser imposta com massacres
reais ou cinematográficos. Confiante na farsa que encena, "Gladiador" transforma a ironia em
cinismo, rola na ideologia mais
cansativa.
Mas o fato de não ter novidade
nenhuma, de apostar no reconhecível e no passadista, é saudado
como originalidade. O círculo se
fecha como uma arena hedionda.
Esse filme é detestável.
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