São Paulo, quarta-feira, 24 de maio de 2000


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LITERATURA
O escritor do livro que inspirou "O Carteiro e o Poeta" é indicado para ser embaixador do Chile na Alemanha
Skármeta prega uma nova ética para a AL

LÉO GERCHMANN
DA AGÊNCIA FOLHA, EM PORTO ALEGRE

O escritor chileno Antonio Skármeta, 59, autor do livro "O Carteiro de Neruda", que inspirou o filme "O Carteiro e o Poeta", disse à Folha que deve ser estabelecida uma nova e "original" ética latino-americana. Ele esteve em Porto Alegre para falar no Fórum de Ética da Federasul (Federação das Associações Empresariais do Rio Grande do Sul).
O escritor foi indicado pelo novo presidente do Chile, Ricardo Lagos, para ser o embaixador chileno na Alemanha, o que, segundo ele, demonstra a preocupação oficial de valorizar a cultura. Essa nova ética estaria baseada nisso.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

Folha - Como foi sua convivência com Pablo Neruda?
Antonio Skármeta
- Não foi longa. Quando ele era famoso e vivia no Chile, era um mito. Todos queriam conhecê-lo. Quem mais causava fastio a Neruda era aquele que o queria como escritor do prólogo de alguma obra. Todos os poetas jovens queriam. Eu não era poeta. Salvei-me de cansar Neruda. Mas, quando publiquei meu primeiro livro de contos, fui visitá-lo e pedi a ele que o lesse. Isso foi em 1967 ou 1968. Ele leu e me disse que o livro era bom, mas que isso não queria dizer nada, porque todos os primeiros livros de escritores chilenos são bons.

Folha - O que o inspirou a escrever "O Carteiro de Neruda"?
Skármeta
- Minha própria vida no Chile. Interessa-me a relação entre o homem comum e os grandes homens, que foram criadores e fizeram história. Interessa-me a relação entre o cotidiano e o transcendente, entre o banal e o profundo. No Chile, havia uma situação ideal para trabalhar com esse material. Neruda era um grande poeta popular, cujos versos eram recitados pelas pessoas que nem sabiam ler ou escrever. Havia um povo encantado pela força que tinha e pelo quanto havia avançado na busca da democracia. Essa aliança entre poeta e povo era fantástica. O poeta se sentia porta-voz do povo, e o povo o inspirava. Isso me levou a pensar na relação entre alguém como o carteiro e Neruda. Além disso, há uma infeliz coincidência. No Chile, há um golpe e, em dez dias, morre o poeta. Ou seja, morre a democracia, morre o povo. Morre o Chile. Trata-se de uma metáfora oferecida pela história.

Folha - As pessoas mudaram no Chile após a ditadura de Pinochet?
Skármeta
- Mudaram muito. Antes, vivíamos um contínuo processo de aprofundamento democrático. O golpe separou as pessoas por classes, profissões. O Chile também se separou entre os contra e os a favor de Pinochet.

Folha - Hoje se poderia escrever "O Carteiro de Neruda" no Chile?
Skármeta
- Hoje sim. Refiro-me aos últimos dois meses, com o novo governo, que tem dado grande ênfase à cultura. Lagos fez sua campanha eleitoral rodeado de artistas e intelectuais. Eu mesmo fui indicado para ser o novo embaixador do Chile na Alemanha.

Folha - Que significado isso pode ter para a cultura do Chile?
Skármeta
- O mundo da cultura está na vanguarda chilena. Criou-se uma institucionalidade cultural. Isso significa uma concepção mais complexa do homem. A relação entre povo e poeta está mais fluida. Cada vez a cultura vai ter mais espaço, e, assim, o homem vai ser melhor.

Folha - Isso se estenderá por toda a América Latina?
Skármeta
- É urgente. É preciso criar uma ética original nas relações humanas que seja de caráter latino-americano. A nós não serve uma ética calvinista de sofrimento pelo trabalho. As partes devem se conhecer, a parte empresarial e a parte trabalhista. Isso é fundamental e já não pode ser pela via socialista, que está caída, nem pela economia neoliberal conservadora, porque não é integradora da sociedade. Esses são muitos dos conflitos que existem. É o momento da cultura. A cultura é aquela instância que pode dar ao povo o orgulho de criar junto, de viver junto. A mudança cultural é algo que tem de vir do Estado e da empresa privada. Aí está o jogo para que a América Latina tenha sua identidade. É o que ocorre na Europa, onde há um homem integrado em sua sociedade, que não vê o trabalho como escravidão.

Folha - A ética calvinista é muito arraigada na nossa cultura. De onde poderia vir algo diferente disso?
Skármeta
- Do respeito à dignidade. Pense nos avanços enormes que têm tido os direitos dos negros nos Estados Unidos, na revolução que significaram movimentos culturais como o dos hippies. Pense no feminismo, que aprendeu a lutar combinando estratégias políticas antigas com novas. Há vias inventivas para chegar a um contrato de confiança.

Folha - No que o senhor tem trabalhado?
Skármeta
- Fiz agora o romance "A Boda do Poeta", que nada tem a ver com Neruda. É uma história de imigrantes europeus que ocorre em 1913. É um estrangeiro de muita fortuna que, para abandonar a competição comercial, decide abandonar esses valores e sua família para viver em uma ilha do mar Adriático bastante primitiva. Chega a essa ilha, apaixona-se por uma jovem mulher e a pede em casamento. Quando vão celebrar esse casamento, explodem dois grandes acontecimentos: em um, de caráter mítico, as pessoas começam a lembrar que a última moradora que se casou com um estrangeiro morreu na noite do casamento. O segundo acontecimento é que nessa ilha ocorre uma insurreição pela independência. Como consequência, alguns personagens têm de se transformar em imigrantes.

Folha - O tema preponderante é o afetivo ou o político?
Skármeta
- É o amor, e o personagem forte é a jovem Alia. O livro foi lançado em países de língua espanhola. No Brasil, será lançado pela editora Record. Dois outros livros estão prontos e serão lançados em 2001 e 2002.

Folha - O que o senhor pensa da literatura latino-americana?
Skármeta
- A marca da literatura latino-americana é a origem, de raízes indígenas, do seu caráter lúdico. Nossos elementos míticos, mágicos, populares e políticos conquistaram a Europa.

Folha - O senhor crê que Ricardo Lagos seja uma opção verdadeira de esquerda?
Skármeta
- Acredito que é a opção mais de esquerda que teve o Chile nos últimos anos, desde Allende (deposto pelo golpe de Pinochet em 1973). Por certo que é partidário da economia de mercado com um rosto humano, como todos da terceira via. Lagos está entusiasmado com o Mercosul, quer consolidar uma vanguarda compartilhada com o grupo. Há uma tentativa de dar um formato intelectual e prático a uma economia de mercado que funcione com os valores do homem.

Folha - O senhor crê nisso?
Skármeta
- É uma via possível. Não creio que retorne a utopia socialista.

Folha - A possibilidade de o ex-ditador Augusto Pinochet ser julgado no Chile terá que espécie de significado no Chile e na região?
Skármeta
- Se, como eu espero, os juízes disserem que ele não tem imunidade parlamentar, porque seus atos são graves, haverá um um êxito extraordinário para a democracia. Significa que o Judiciário começa a funcionar de forma independente. Se os três poderes funcionarem independentemente, teremos reintegrada a democracia. A questão é que haja uma pauta integradora da sociedade. Nesse caso (de Pinochet), pode-se perder ou ganhar.

Folha - Os governos social-democratas do Brasil, da Argentina e do Chile podem conseguir aperfeiçoar o socialismo?
Skármeta
- É muito cedo para dizer. O termo "terceira via" tem uma conotação muito forte. Depois da guerra fria, está claro que há um grande perdedor, que é o socialismo real. Mas isso não significa que a outra parte tenha vencido. As tarefas estão pendentes. As injustiças permanecem. É necessário um tipo de ação política que torne viável essa terceira via. Creio na chance desse caminho.


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