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LITERATURA
O escritor do livro que inspirou "O Carteiro e o Poeta" é indicado para ser embaixador do Chile na Alemanha
Skármeta prega uma nova ética para a AL
LÉO GERCHMANN
DA AGÊNCIA FOLHA, EM PORTO ALEGRE
O escritor chileno Antonio
Skármeta, 59, autor do livro "O
Carteiro de Neruda", que inspirou o filme "O Carteiro e o Poeta",
disse à Folha que deve ser estabelecida uma nova e "original" ética
latino-americana. Ele esteve em
Porto Alegre para falar no Fórum
de Ética da Federasul (Federação
das Associações Empresariais do
Rio Grande do Sul).
O escritor foi indicado pelo novo presidente do Chile, Ricardo
Lagos, para ser o embaixador chileno na Alemanha, o que, segundo ele, demonstra a preocupação
oficial de valorizar a cultura. Essa
nova ética estaria baseada nisso.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
Folha - Como foi sua convivência
com Pablo Neruda?
Antonio Skármeta - Não foi longa. Quando ele era famoso e vivia
no Chile, era um mito. Todos queriam conhecê-lo. Quem mais causava fastio a Neruda era aquele
que o queria como escritor do
prólogo de alguma obra. Todos os
poetas jovens queriam. Eu não era
poeta. Salvei-me de cansar Neruda. Mas, quando publiquei meu
primeiro livro de contos, fui visitá-lo e pedi a ele que o lesse. Isso
foi em 1967 ou 1968. Ele leu e me
disse que o livro era bom, mas que
isso não queria dizer nada, porque todos os primeiros livros de
escritores chilenos são bons.
Folha - O que o inspirou a escrever "O Carteiro de Neruda"?
Skármeta - Minha própria vida
no Chile. Interessa-me a relação
entre o homem comum e os grandes homens, que foram criadores
e fizeram história. Interessa-me a
relação entre o cotidiano e o
transcendente, entre o banal e o
profundo. No Chile, havia uma situação ideal para trabalhar com
esse material. Neruda era um
grande poeta popular, cujos versos eram recitados pelas pessoas
que nem sabiam ler ou escrever.
Havia um povo encantado pela
força que tinha e pelo quanto havia avançado na busca da democracia. Essa aliança entre poeta e
povo era fantástica. O poeta se
sentia porta-voz do povo, e o povo o inspirava. Isso me levou a
pensar na relação entre alguém
como o carteiro e Neruda. Além
disso, há uma infeliz coincidência.
No Chile, há um golpe e, em dez
dias, morre o poeta. Ou seja, morre a democracia, morre o povo.
Morre o Chile. Trata-se de uma
metáfora oferecida pela história.
Folha - As pessoas mudaram no
Chile após a ditadura de Pinochet?
Skármeta - Mudaram muito.
Antes, vivíamos um contínuo
processo de aprofundamento democrático. O golpe separou as
pessoas por classes, profissões. O
Chile também se separou entre os
contra e os a favor de Pinochet.
Folha - Hoje se poderia escrever
"O Carteiro de Neruda" no Chile?
Skármeta - Hoje sim. Refiro-me
aos últimos dois meses, com o novo governo, que tem dado grande
ênfase à cultura. Lagos fez sua
campanha eleitoral rodeado de
artistas e intelectuais. Eu mesmo
fui indicado para ser o novo embaixador do Chile na Alemanha.
Folha - Que significado isso pode
ter para a cultura do Chile?
Skármeta - O mundo da cultura
está na vanguarda chilena. Criou-se uma institucionalidade cultural. Isso significa uma concepção
mais complexa do homem. A relação entre povo e poeta está mais
fluida. Cada vez a cultura vai ter
mais espaço, e, assim, o homem
vai ser melhor.
Folha - Isso se estenderá por toda
a América Latina?
Skármeta - É urgente. É preciso
criar uma ética original nas relações humanas que seja de caráter
latino-americano. A nós não serve uma ética calvinista de sofrimento pelo trabalho. As partes
devem se conhecer, a parte empresarial e a parte trabalhista. Isso
é fundamental e já não pode ser
pela via socialista, que está caída,
nem pela economia neoliberal
conservadora, porque não é integradora da sociedade. Esses são
muitos dos conflitos que existem.
É o momento da cultura. A cultura é aquela instância que pode dar
ao povo o orgulho de criar junto,
de viver junto. A mudança cultural é algo que tem de vir do Estado
e da empresa privada. Aí está o jogo para que a América Latina tenha sua identidade. É o que ocorre na Europa, onde há um homem integrado em sua sociedade,
que não vê o trabalho como escravidão.
Folha - A ética calvinista é muito
arraigada na nossa cultura. De onde poderia vir algo diferente disso?
Skármeta - Do respeito à dignidade. Pense nos avanços enormes
que têm tido os direitos dos negros nos Estados Unidos, na revolução que significaram movimentos culturais como o dos hippies.
Pense no feminismo, que aprendeu a lutar combinando estratégias políticas antigas com novas.
Há vias inventivas para chegar a
um contrato de confiança.
Folha - No que o senhor tem trabalhado?
Skármeta - Fiz agora o romance
"A Boda do Poeta", que nada tem
a ver com Neruda. É uma história
de imigrantes europeus que ocorre em 1913. É um estrangeiro de
muita fortuna que, para abandonar a competição comercial, decide abandonar esses valores e sua
família para viver em uma ilha do
mar Adriático bastante primitiva.
Chega a essa ilha, apaixona-se por
uma jovem mulher e a pede em
casamento. Quando vão celebrar
esse casamento, explodem dois
grandes acontecimentos: em um,
de caráter mítico, as pessoas começam a lembrar que a última
moradora que se casou com um
estrangeiro morreu na noite do
casamento. O segundo acontecimento é que nessa ilha ocorre
uma insurreição pela independência. Como consequência, alguns personagens têm de se
transformar em imigrantes.
Folha - O tema preponderante é o
afetivo ou o político?
Skármeta - É o amor, e o personagem forte é a jovem Alia. O livro foi lançado em países de língua espanhola. No Brasil, será
lançado pela editora Record. Dois
outros livros estão prontos e serão
lançados em 2001 e 2002.
Folha - O que o senhor pensa da
literatura latino-americana?
Skármeta - A marca da literatura
latino-americana é a origem, de
raízes indígenas, do seu caráter
lúdico. Nossos elementos míticos,
mágicos, populares e políticos
conquistaram a Europa.
Folha - O senhor crê que Ricardo
Lagos seja uma opção verdadeira
de esquerda?
Skármeta - Acredito que é a opção mais de esquerda que teve o
Chile nos últimos anos, desde
Allende (deposto pelo golpe de
Pinochet em 1973). Por certo que
é partidário da economia de mercado com um rosto humano, como todos da terceira via. Lagos está entusiasmado com o Mercosul,
quer consolidar uma vanguarda
compartilhada com o grupo. Há
uma tentativa de dar um formato
intelectual e prático a uma economia de mercado que funcione
com os valores do homem.
Folha - O senhor crê nisso?
Skármeta - É uma via possível.
Não creio que retorne a utopia socialista.
Folha - A possibilidade de o ex-ditador Augusto Pinochet ser julgado no Chile terá que espécie de significado no Chile e na região?
Skármeta - Se, como eu espero,
os juízes disserem que ele não tem
imunidade parlamentar, porque
seus atos são graves, haverá um
um êxito extraordinário para a
democracia. Significa que o Judiciário começa a funcionar de forma independente. Se os três poderes funcionarem independentemente, teremos reintegrada a democracia. A questão é que haja
uma pauta integradora da sociedade. Nesse caso (de Pinochet),
pode-se perder ou ganhar.
Folha - Os governos social-democratas do Brasil, da Argentina e do
Chile podem conseguir aperfeiçoar
o socialismo?
Skármeta - É muito cedo para
dizer. O termo "terceira via" tem
uma conotação muito forte. Depois da guerra fria, está claro que
há um grande perdedor, que é o
socialismo real. Mas isso não significa que a outra parte tenha vencido. As tarefas estão pendentes.
As injustiças permanecem. É necessário um tipo de ação política
que torne viável essa terceira via.
Creio na chance desse caminho.
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