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RESENHA
Sarcasmo de "Jane Spitfire" empalidece diante de cinismo atual
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Em 1975, exilado na Argentina,
Augusto Boal pressentia que
um golpe iria derrubar Isabelita
Perón, no mesmo processo intervencionista norte-americano que
havia apoiado o golpe militar no
Brasil. Inspirado pelas falcatruas
folhetinescas de Nelson Rodrigues e David Nasser, escreve então "A Deliciosa e Sangrenta
Aventura Latina de Jane Spitfire",
paródia dos romances baratos de
espionagem que décadas atrás havia traduzido para a revista "X9".
Com sua experiência de exercícios teatrais nos quais a encenação de fotonovelas evidenciava a
ideologia reacionária por trás dos
clichês, Boal se propôs a "fazer o
feitiço virar contra o feiticeiro", ao
exacerbar violência e sexo, atrativos do gênero, como estratégia
para denunciar "o mecanismo
imperialista norte-americano por
trás dos acontecimentos".
Publicada pelo "Pasquim" um
ano depois, "Jane" valeu como
um desabafo interno entre resistentes, por meio de um humor
corrosivo contra a hipocrisia do
"american way of life" que embalava o sonho brasileiro.
Em tempos de Doutrina Bush,
quando uma guerra de ocupação
com objetivos econômicos quase
não disfarçados se candidata ao
Prêmio Nobel da Paz, parece que
as piores caricaturas tomaram
corpo, tornando assim oportuna
a republicação do folhetim subversivo. Porém, o sarcasmo, que é
devastador contra a hipocrisia,
empalidece diante do cinismo.
A fábula é de um primarismo
aterrador, não só estilístico
-sendo propositalmente medíocre, ainda se tolera do autor a trama repetitiva e a pobreza do diálogo-, mas estratégico: combate
clichês da direita com clichês de
esquerda, em um maniqueísmo
que felizmente envelheceu. Mais
eficaz do que esse reacionarismo
de esquerda é a crítica que os próprios norte-americanos fazem de
seus valores, como prova o documentarista Michael Moore, ou
mesmo uma peça como "Quem
Tem Medo de Virginia Woolf", de
Albee. Hoje, porém, quem tem
medo de Jane Spitfire?
Mais constrangedor para o criador do Teatro do Oprimido é o
achincalhe sistemático da protagonista por sua sexualidade exacerbada. Deve o leitor deduzir por
oposição que a castidade é uma
virtude revolucionária? O tom,
nesse caso, fica estranhamente
parecido com o fascínio das beatas pelo pecado. Se fosse transformada em musical, essa cartilha
ideológica poderia atrair sem dúvida uma platéia jovem: mas, então, haveria o forte risco de Jane
Spitfire, como hábil agente dupla
que é, fazer novamente o feitiço
virar contra o feiticeiro.
A Deliciosa e Sangrenta Aventura Latina de Jane Spitfire
Autor: Augusto Boal
Editora: Geração Editorial
Quanto: R$ 32 (272 págs.)
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