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MARCELO COELHO
Nem aqui, nem na China
A "Arte da Guerra" é um dos capítulos iniciais da epopéia da constituição do Estado moderno
É MAIS fácil do que jogar no bicho: em quase toda banca de
jornal você pode encontrar
uma edição de bolso de "A Arte da
Guerra", o clássico de Sun Tzu que
está entre as leituras de Marcos Camacho, o "Marcola" do PCC. A edição da L&PM, baseada numa tradução francesa de 1772, custa em torno de dez reais.
Não só o Marcola, mas executivos, profissionais liberais e técnicos
de futebol, pelo que informou Ricardo Bonalume na "Revista da Folha" deste domingo, recorrem aos
preceitos do sábio chinês.
Devo ser muito pacífico, acomodado e sem imaginação, porque a
maior parte dos conselhos de "A Arte da Guerra" não me parece capaz
de grande impacto.
Quinhentos anos antes de Cristo,
pode ter sido útil a um general saber que, se as árvores estão se mexendo "apesar da calmaria", isso é
sinal de que o inimigo avança. Ou
que, se as tropas do inimigo estão
atravessando um rio, deve-se atacá-las quando metade dos soldados já
tiver passado para a outra margem.
Mas a tradução desse ensinamento
para o mundo da concorrência entre fabricantes de cerveja ou para a
organização de um esquema de
narcotráfico é das mais incertas.
O prefácio da minha edição diz
que, ao longo dos séculos, uma infinidade de comentários foi-se acumulando em torno do original
-"lendas, fábulas, exemplos históricos". Nada disso foi traduzido.
Provavelmente, o que se faz em
todas essas palestras para executivos e manuais de administração
inspirados em Sun Tzu também é
rechear de exemplos práticos a esqualidez do original. Como em toda
"arte" desse gênero (arte da conversação, arte de agradar às mulheres
etc.), o mundo da prática tem dimensões muito mais complexas
que as da teoria, e uma casuística
inesgotável de situações, "cases" e
historinhas acaba tendo o efeito de
confirmar e desmentir cada princípio teórico mais amplo.
Considerações estritamente militares -como a da desvantagem de
subir terrenos íngremes no momento do ataque- podem ser de
grande utilidade para a polícia ou
para alguma facção rival, quando se
trata de invadir um morro ocupado
por uma organização criminosa.
Mesmo assim, há uma diferença
entre as ações do PCC quando procura tomar conta de um território
específico -coisa que diz obviamente respeito à "arte da guerra"-
e quando resolve impor o caos para
obter vantagens específicas junto
ao sistema prisional.
A ironia da coisa é que o livro de
Sun Tzu -ao menos nesta tradução, feita em pleno Século das Luzes, no reinado de Luís 15- visa sobretudo fazer do general um servidor do Estado, e tornar toda guerra
uma empreitada breve, racional,
com um mínimo dispêndio de recursos materiais e humanos.
As virtudes do guerreiro deixam
de ser a violência sanguinária, e a
guerra deixa de ser um esporte de
senhores feudais; o cálculo, a prudência e a informação passam a ser
fatores decisivos no combate. A
honra militar continua importante,
é claro, mas o principal está em
atingir, sem sacrifícios inúteis, o objetivo pretendido: a saber, o fortalecimento do poder central.
A "Arte da Guerra" surge, assim,
como um dos capítulos iniciais da
longa e weberiana epopéia que foi a
constituição do Estado moderno.
Não deixa de ser um paradoxo que,
num momento marcado pela falência acelerada dessa instituição, o livro de Sun Tzu ganhe tantos leitores.
Mas o paradoxo se explica facilmente. Gerentes de vendas, esportistas, engenheiros e criminosos se
tornam, cada um a seu modo, pequenos generais num mundo instável, onde a ordem pública e a previsibilidade de cada empreendimento não passam de ficções de mau
gosto.
Desse modo, todos se projetam
imaginariamente num ambiente de
remota nobreza guerreira, como
que romantizando o grotesco da
própria situação. "Ao percorrer as
fileiras de teu exército", diz o sábio,
"se notares algum vazio, preenche-o. Se encontrares superabundância,
reduz. Se perceberes algo alto demais, abaixa. Se houver algo excessivamente baixo, eleva".
Uma utopia de equilíbrio e ordem
cósmica, como na medicina tradicional, se expressa nesses ensinamentos. Coisa que dificilmente vai
ser atingida nos dias que correm
-nem aqui, nem na China.
@ - coelhofsp uol.com.br
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