São Paulo, quarta-feira, 24 de maio de 2006

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MARCELO COELHO

Nem aqui, nem na China

A "Arte da Guerra" é um dos capítulos iniciais da epopéia da constituição do Estado moderno

É MAIS fácil do que jogar no bicho: em quase toda banca de jornal você pode encontrar uma edição de bolso de "A Arte da Guerra", o clássico de Sun Tzu que está entre as leituras de Marcos Camacho, o "Marcola" do PCC. A edição da L&PM, baseada numa tradução francesa de 1772, custa em torno de dez reais. Não só o Marcola, mas executivos, profissionais liberais e técnicos de futebol, pelo que informou Ricardo Bonalume na "Revista da Folha" deste domingo, recorrem aos preceitos do sábio chinês. Devo ser muito pacífico, acomodado e sem imaginação, porque a maior parte dos conselhos de "A Arte da Guerra" não me parece capaz de grande impacto. Quinhentos anos antes de Cristo, pode ter sido útil a um general saber que, se as árvores estão se mexendo "apesar da calmaria", isso é sinal de que o inimigo avança. Ou que, se as tropas do inimigo estão atravessando um rio, deve-se atacá-las quando metade dos soldados já tiver passado para a outra margem. Mas a tradução desse ensinamento para o mundo da concorrência entre fabricantes de cerveja ou para a organização de um esquema de narcotráfico é das mais incertas. O prefácio da minha edição diz que, ao longo dos séculos, uma infinidade de comentários foi-se acumulando em torno do original -"lendas, fábulas, exemplos históricos". Nada disso foi traduzido. Provavelmente, o que se faz em todas essas palestras para executivos e manuais de administração inspirados em Sun Tzu também é rechear de exemplos práticos a esqualidez do original. Como em toda "arte" desse gênero (arte da conversação, arte de agradar às mulheres etc.), o mundo da prática tem dimensões muito mais complexas que as da teoria, e uma casuística inesgotável de situações, "cases" e historinhas acaba tendo o efeito de confirmar e desmentir cada princípio teórico mais amplo. Considerações estritamente militares -como a da desvantagem de subir terrenos íngremes no momento do ataque- podem ser de grande utilidade para a polícia ou para alguma facção rival, quando se trata de invadir um morro ocupado por uma organização criminosa. Mesmo assim, há uma diferença entre as ações do PCC quando procura tomar conta de um território específico -coisa que diz obviamente respeito à "arte da guerra"- e quando resolve impor o caos para obter vantagens específicas junto ao sistema prisional. A ironia da coisa é que o livro de Sun Tzu -ao menos nesta tradução, feita em pleno Século das Luzes, no reinado de Luís 15- visa sobretudo fazer do general um servidor do Estado, e tornar toda guerra uma empreitada breve, racional, com um mínimo dispêndio de recursos materiais e humanos. As virtudes do guerreiro deixam de ser a violência sanguinária, e a guerra deixa de ser um esporte de senhores feudais; o cálculo, a prudência e a informação passam a ser fatores decisivos no combate. A honra militar continua importante, é claro, mas o principal está em atingir, sem sacrifícios inúteis, o objetivo pretendido: a saber, o fortalecimento do poder central. A "Arte da Guerra" surge, assim, como um dos capítulos iniciais da longa e weberiana epopéia que foi a constituição do Estado moderno. Não deixa de ser um paradoxo que, num momento marcado pela falência acelerada dessa instituição, o livro de Sun Tzu ganhe tantos leitores. Mas o paradoxo se explica facilmente. Gerentes de vendas, esportistas, engenheiros e criminosos se tornam, cada um a seu modo, pequenos generais num mundo instável, onde a ordem pública e a previsibilidade de cada empreendimento não passam de ficções de mau gosto. Desse modo, todos se projetam imaginariamente num ambiente de remota nobreza guerreira, como que romantizando o grotesco da própria situação. "Ao percorrer as fileiras de teu exército", diz o sábio, "se notares algum vazio, preenche-o. Se encontrares superabundância, reduz. Se perceberes algo alto demais, abaixa. Se houver algo excessivamente baixo, eleva". Uma utopia de equilíbrio e ordem cósmica, como na medicina tradicional, se expressa nesses ensinamentos. Coisa que dificilmente vai ser atingida nos dias que correm -nem aqui, nem na China.

@ - coelhofsp uol.com.br


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