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DRAUZIO VARELLA
Mecanismo diabólico
A nicotina provoca alterações fisiológicas insensíveis à força de vontade do cidadão
A SABEDORIA popular diz que o
cigarro acalma e dá prazer e
que a dependência é psicológica.
A sapiência botequinesca esquece
dos fumantes inveterados que têm
ódio do cigarro, e que a nicotina provoca alterações fisiológicas insensíveis à força de vontade do cidadão.
Em artigo à revista "Scientific
American", Josef DiFranza revê estudos que explicam as raízes bioquímicas da dependência de nicotina e
contradizem o dogma de que ela levaria anos para escravizar o usuário.
Trabalhos iniciados por ele em
1997, com centenas de adolescentes
fumantes, demonstraram que sintomas de abstinência e dificuldade para largar de fumar são detectáveis logo depois dos primeiros cigarros.
Em média, o adolescente ainda fuma apenas dois cigarros por semana
quando eles se manifestam.
Agitação, irritabilidade, dificuldade de concentração, ansiedade,
queixas características da síndrome
de abstinência, surgem em apenas
dois dias em 10% dos que fumaram
uma única vez. E, em 25% a 35% dos
que fumam ocasionalmente durante um mês.
O aparecimento precoce dessa
sintomatologia aumenta 200 vezes
a probabilidade de virar fumante para sempre.
A nicotina age em receptores existentes nos neurônios cerebrais. Ao
ligar-se a eles, são estimulados circuitos que liberam neurotransmissores: dopamina, serotonina, opióides e noradrenalina, entre outros.
Na falta dela, os receptores ficam vazios, a concentração de neurotransmissores cai e a crise de abstinência
vem com tudo.
Se medirmos os níveis de atividade metabólica no cérebro de ratos
que receberam uma dose diária de
nicotina, durante cinco dias, observamos que depois da primeira dose
ocorre aumento relativamente limitado da atividade em diversas áreas
cerebrais. Após a quinta, a atividade
se torna muito mais intensa e espalhada pelo cérebro inteiro. Quer dizer, meia dúzia de doses é suficiente
para que o cérebro fique sensibilizado e predisposto à dependência.
Em seres humanos, após o primeiro cigarro a nicotina ocupará 88%
dos receptores existentes. Mas, a repetição do estímulo fará com que os
neurônios aumentem a produção de
receptores. Enquanto no principiante uma pequena dose preenche
por um longo intervalo de tempo
praticamente todos os receptores
disponíveis, naquele que fuma um
maço por dia a síndrome de abstinência se instala depois de minutos.
O intervalo livre de sintomas entre o último cigarro e o ataque de
nervos para acender o próximo é
chamado de período de latência.
Nos noviços esse período é longo;
um único cigarro pode manter a crise sob controle por uma ou duas semanas. O uso repetitivo, entretanto,
induz o aparecimento de tolerância,
fenômeno que encurta progressivamente a latência.
Enquanto os sintomas de abstinência já são perceptíveis a partir do
primeiro cigarro, a tolerância se desenvolve progressivamente no decorrer de meses ou anos. É ela, no
entanto, que mantém o fumante nas
garras do fornecedor.
Uma vez instalada, a tolerância
finca raízes sólidas nos neurônios
cerebrais. Depois de anos, quando o
ex-usuário julga haver subjugado o
vício e decide fumar apenas um cigarrinho, ela ressurge das cinzas: em
poucos dias ele estará fumando como antes; senão mais.
Quem já fumou, como eu, tem direito de considerar-se ex-usuário de
nicotina, ex-dependente jamais. Em
algum canto do cérebro, a serpente
da dependência estará à espreita do
primeiro deslize.
Aqueles que conseguiram abster-se por apenas três meses ou passaram décadas em abstinência, quando recaem voltam com a mesma rapidez ao número de cigarros diários
anteriormente consumidos. A dependência de nicotina é uma doença
crônica, incurável, o cérebro do fumante nunca mais voltará ao estado
original.
A farmacologia não conhece droga
que cause tamanha dependência
química.
A nicotina não vicia por causar
sensações inacessíveis aos mortais
que enfrentam o cotidiano de cara
limpa. Inundar o cérebro com ela
não faz você experimentar a alegria
do álcool, a onipotência da cocaína, o
relaxamento da maconha ou as visões do LSD. Não existe barato nem
viagem. Você fuma apenas para
aplacar as crises de abstinência que
a própria droga provoca a cada trinta
minutos.
O único prazer de quem fuma é
sentir a paz de volta ao corpo suplicante, até que a próxima crise bata à
porta para enlouquecê-lo. Parece invenção de Satanás.
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