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BERNARDO CARVALHO
O mundo em formol
Num texto muito conhecido e
citado, o crítico de cinema
André Bazin faz uma "história
psicológica" das artes como um
esforço imaginário do homem para vencer a morte e o tempo, tentando "salvar o ser pela aparência". Bazin parte da múmia do
Egito antigo, vista como "a primeira estátua", para terminar no
cinema: "O filme já não se contenta em conservar o objeto envolto no seu instante como, no
âmbar, os corpos intactos de insetos de uma era passada (...). Pela
primeira vez, a imagem das coisas é também a da sua duração,
como uma múmia da transição".
O cinema preserva a imagem do
que já não existe, em movimento.
Desse ponto de vista, todo filme
que fala da morte é um pleonasmo. De alguma forma, passa a ser
metalinguagem. "Taurus", de
Aleksandr Sokúrov, por exemplo,
em cartaz em São Paulo, é o cinema a se representar, uma alegoria
de si mesmo. O filme encena os últimos dias de Lênin moribundo,
depois de sofrer um derrame, debatendo-se contra a morte, preocupado em saber se o sol continuará se levantando quando ele
já não estiver entre os vivos.
"Taurus" (2001) é o segundo de
uma série de quatro filmes que o
diretor russo pretende fazer sobre
líderes e ditadores do século 20, e
que começou com "Moloch"
(1999), uma encenação de Hitler
na intimidade, recolhido com Eva
Braun em Keistenhaus, nos Alpes
alemães. Para reforçar ainda
mais a impressão metalinguística, os personagens de "Taurus"
evoluem como se estivessem dentro de um vidro de formol e já não
passassem de corpos ou órgãos
mortos. Uma luz azul-esverdeada
banha tudo e todos, do quarto em
que o líder espera pela morte à
paisagem em torno da propriedade à qual ele está confinado.
O que mais salta aos olhos nessa
representação é a dificuldade dos
movimentos. É também o que expõe o absurdo de tudo. Os personagens mal conseguem andar,
caem uns por cima dos outros. A
mulher do líder moribundo se arrasta na cama, sobre o marido,
arrancando gemidos do doente.
Quando o casal é levado para
passear no campo, mais parecem
"dois corpos de mãos dadas". São
mortos-vivos representando.
Mas o que significa filmar Lênin à morte? "Taurus" não é certamente apenas uma ironia alegórica do fracasso do comunismo.
O filme não se contenta com a facilidade de uma constatação póstuma. Aqui, a alegoria histórica é
um pastelão em que os personagens se arrastam e resmungam
sem a agilidade característica dos
atores de pastelão. Uma comédia
com paralisia.
Não há dramaturgia nem diálogos propriamente ditos. Quando vai visitá-los, Stálin só resmunga e faz algumas caretas, como um ator do cinema mudo. O
médico diz a Lênin: "Como eu
gostaria de ver o seu cérebro. Você
é o nosso atleta intelectual". E, no
entanto, o doente já não consegue
multiplicar 17 por 22 e passa todo
o filme (seus últimos dias) tentando fazer essa conta, em vão.
O tempo dramático se arrasta
como os protagonistas, como se
também fosse conservado em formol. Lênin e a mulher são como
personagens de Beckett, velhos comediantes paralisados. Estão sob
observação. Há sempre alguém à
distância ou escondido a observá-los. Enquanto o líder moribundo
se debate com a aritmética mais
elementar, o médico pensa: "Assim que ele morrer, vão me dar
um tiro". E Lênin, sem conseguir
chegar a nenhum resultado, olha
para o médico e pensa: "No que
será que ele está pensando?", como se o formol que os envolvesse
também os impedisse de qualquer
tipo de comunicação ou de raciocínio mais elaborado.
Bazin dizia sobre "Ordet"
(1955), a obra-prima do cineasta
dinamarquês Carl Dreyer, que
nunca nenhum filme tinha chegado tão perto da morte. Em "Ordet", sob uma ótica em tudo o
mais naturalista e prosaica (e por
isso tão mais inesperada), há
uma ressurreição. Uma mulher
volta da morte, como que por milagre. A cena é o verdadeiro pleonasmo, pois representa e expõe a
ilusão que é o próprio cinema, ao
dar movimento à imagem dos
mortos. O filme é tão mais genial
por mostrar ao espectador, em toda a sua maravilha e em todo o
seu absurdo, aquilo que no fundo
ele veio procurar quando entrou
na sala de cinema.
Segundo Bazin, a fotografia liberou a pintura da busca de um
falso realismo, "psicológico" e não
estético, que a assombrava desde
sempre. Com o surgimento da fotografia, a pintura já não precisava tentar "salvar o ser pela aparência". Por sua vez, um fotógrafo
como o americano Andres Serrano, ao fazer uma série de retratos
no necrotério, em 1992, subverteu
a função original da fotografia de
preservar a imagem dos vivos. Ao
usar cadáveres como modelos, ele
liberou ironicamente a fotografia
da sua função ontológica, voltando-a para a pintura. E muitas
dessas imagens da morgue remetem de fato a pintores como Bellini e Caravaggio.
O que Sokúrov, Dreyer e Serrano repetem, cada um a sua maneira, é que o verdadeiro realismo
não é a busca da semelhança, a
ilusão das formas, mas, como dizia Bazin, "a necessidade de exprimir a significação ao mesmo
tempo concreta e essencial do
mundo (...), a expressão de realidades espirituais em que o modelo se encontra transcendido pelo
simbolismo das formas". Uma
idéia simples que os oportunistas
de hoje procuram esquecer.
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