São Paulo, domingo, 24 de julho de 2005

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CLÁSSICO

Atriz faz a prostituta Nana num dos mais inovadores filmes do diretor

Em "Viver a Vida", Godard inventa o mito Anna Karina

Divulgação
Anna Karina em cena de "Viver a Vida", de 1962, um dos sete filmes que rodou com Godard


ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE DOMINGO

A garota se chamava Hanne Karin Bayer. Era dinamarquesa. O pai abandonara a família em Copenhagen, a mãe não se importava muito com o destino da menina. Quando ela chegou a Paris, em 1958, para tentar a vida como atriz, tinha 18 anos. Passou fome. Arrumou alguns bicos como modelo. Foi Coco Chanel quem sugeriu que mudasse de nome. Hanne Karin virou Anna Karina.
Em 1959, Jean-Luc Godard viu o rosto de Karina numa publicidade. Pediu que a convidassem para uma ponta em seu primeiro longa. Ela recusou o papel, pois teria que aparecer de sutiã. O filme era "Acossado" (1959), que provocou uma revolução no cinema.
Godard voltou a procurá-la para o seu segundo longa, "O Pequeno Soldado" (1960). Desta vez, ela aceitou o papel. Eles se apaixonaram. Fizeram "Uma Mulher É uma Mulher" (1961), o filme mais feliz do diretor, e se casaram. Em 1962, Godard filmou "Viver a Vida", que transformou Anna Karina num mito do cinema.
Menos cinéfilo que "Acossado", menos provocativo que "O Pequeno Soldado", menos esportivo que "Uma Mulher É uma Mulher", "Viver a Vida" foi o filme com o qual Godard, sem abrir mão da inovação, venceu a maior parte das resistências críticas que ainda havia ao seu cinema.
A partir de um tema relativamente freqüente no cinema francês, a prostituição, Godard avança sobre questões sociológicas e filosóficas, realizando uma obra de corte ensaístico, que, no entanto, é uma de suas narrativas mais inteiras, mais belas e mais tristes.
Até hoje surpreende como ele conseguiu conciliar a história trágica da jovem Nana com discussões da filosofia da linguagem e do existencialismo de Sartre. De repente, estamos num café em Paris e a protagonista começa a travar um maravilhoso diálogo com o filósofo francês Brice Parain...
"Viver a Vida" está dividido em 12 "quadros", o que pode ser entendido tanto no sentido pictórico quanto no de cenas teatrais. Godard insiste na intenção teatral do filme, evocando Brecht, em cuja dramaturgia foi buscar inclusive a técnica de distanciamento.
A invenção godardiana está a pleno vapor. Neste filme ao mesmo tempo intimista e social, a câmera, muito livre, lírica e reflexiva, apronta sucessivas reinvenções do plano/contraplano, do primeiro plano e do close-up.
As seqüências ora se estendem em momentos de pura observação ou improviso, ora são feitas de movimentos de câmera que "montam" o filme no interior do plano (a câmera-metralhadora no bistrô), ora são submetidas a cortes abruptos e secos. Godard radicaliza procedimentos de Rossellini, Bresson e dos filmes da série B (aos quais dedica "Viver a Vida"), eliminando cenas de transição e indo diretamente ao centro da narrativa e ao coração do cinema.
O filme é também um conjunto de retratos da protagonista, como um pintor que registrasse o seu modelo em variadas situações. Certos planos de Karina se inspiram em Manet e em Picasso. Outros se referem aos filmes de Griffith, Dreyer, Bergman, três dos principais retratistas do cinema.
No esforço de Godard de alinhar o cinema ao alto modernismo, variados elementos da arte e da crítica contemporâneas são convocados em "Viver a Vida". Quando Karina olha para o espectador ou a câmera se mexe como um pêndulo, compondo com os atores um móbile cinematográfico, a representação realista vai por terra e o filme expõe decididamente a sua própria construção.
"Viver a Vida" é a história da prostituta Nana mas também uma reflexão sobre o "vampirismo" do artista sobre o seu modelo -e que Godard supõe exercer sobre a imagem de Anna Karina.
Eles viveram juntos seis anos. Fizeram sete filmes extraordinários -até "Made in USA", de 1966. Godard mergulhou no cinema militante. Karina seguiu carreira tortuosa, sem o brilho daqueles anos da nouvelle vague, quando o seu amor por Godard, e o dele por ela, coincidiu com a paixão de ambos pelo cinema.


Viver a Vida
    
Diretor: Jean-Luc Godard
Lançamento: Magnus Opus
Quanto: R$ 40, em média


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