São Paulo, domingo, 24 de julho de 2005

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FERREIRA GULLAR

Weissmann, poeta do espaço

Com a morte de Franz Weissmann, o Brasil perde um dos reinventores de seu universo imaginário. Isto é, nossa capacidade de criar beleza ficou menor. Há menos um operário da beleza trabalhando agora em território nacional. Digo isso porque, sem sombra de dúvida, com sua criatividade, esse austro-brasileiro marcou algumas de nossas cidades com a presença de suas esculturas formalmente despojadas e ricas de um mistério lúcido: a arte como produto de uma geometria sensível, de um jogo de probabilidades formais, quase um brinquedo.
Franz era de poucas palavras, mas de muito afeto. Conheci-o na casa de Mário Pedrosa, em 1952, talvez; eu com 22 anos, ele com 40; eu ardendo entre a racionalidade e o delírio; ele, contido, redescobrindo o sonho na geometria. Depois, mudou-se de Belo Horizonte para o Rio e veio morar, por acaso, no mesmo prédio em que eu morava e no mesmo andar; porta com porta, na rua Visconde de Pirajá, em Ipanema, em cima de uma loja que vendia cerâmica. Tornamo-nos amigos e essa proximidade afetuosa durou até outro dia, quando seu coração parou de bater.
Naqueles anos, a arte brasileira vivia um momento de ruptura e reinvenção: ruptura com a tradição modernista, que nascera nacionalista e mais tarde adquirira um traço social e regional com Cândido Portinari. A Segunda Guerra Mundial favoreceu o desdobramento autônomo da arte brasileira por interromper o contato com a arte européia. O fim da guerra, de um lado, permitiu o reatamento do intercâmbio cultural e, de outro, gerou um otimismo que se refletiu em iniciativas culturais como a criação da Bienal de São Paulo. Foi na 1ª Bienal que Franz Weissmann tomou conhecimento da arte de Max Bill, cuja obra "Unidade Tripartida" ganhou o grande prêmio do certame. Bill era o líder do grupo concretista de Ulm e o principal herdeiro das vanguardas construtivas. Mário Pedrosa descobrira a arte concreta de Bill e via nela uma nova expressão do internacionalismo socialista de que fora adepto e militante. Tratava-se de uma linguagem geométrica, universal por definição, sem laivos de nacionalismo ou regionalismo.
O surgimento, no Brasil, da Bienal de São Paulo, em 1951, era um estímulo a mais para o reencontro da arte brasileira com a modernidade internacional. A premiação de Bill foi decisiva para a adesão dos jovens artistas à nova linguagem artística que, diga-se de passagem, quase nada tinha a ver com nosso passado artístico, recente ou longínquo.
Franz, austríaco de nascimento e de temperamento, sem muita dificuldade aderiu à nova estética, que adotou sem se desvincular de imediato da linguagem anterior, na qual se misturavam elementos figurativos com elementos geométricos. Com tal afinco entregou-se às novas experiências formais que, dois anos depois, já se libertara da influência de Bill, abandonando as superfícies contínuas e não-orientáveis maxbilianas para interessar-se sobretudo pelo vazio -o espaço- que veio para substituir, em sua escultura, todo e qualquer resquício da massa opaca. Datam dessa época as primeiras construções feitas com delgadas barras de alumínio que se desenvolvem no espaço, explorando-lhe a ambigüidade ao mesmo tempo que lhe definia os limites. Nessas obras, a forma se assemelha a um desenho tridimensional no interior do espaço -"dentro" dele-, funcionando como mero sinal, indicação ou sugestão que serve tão-somente para revelar do espaço a vazia plenitude, sua inesgotável potencialidade. Nos anos que se seguem, Weissmann elabora e apura essa expressão, descobrindo ritmos cada vez mais econômicos e incisivos para energizar o vazio. Chega finalmente a conceber estruturas de grande leveza, que oferecem ao espectador uma multiplicidade de perspectivas, de ângulos de visão, reveladores das inesperadas e ricas direções do espaço redescoberto. É a partir de então que Weissmann, chegado a essa economia limite da forma, volta a enriquecer suas construções, já agora preocupado com as orquestrações desses ritmos de linhas e vazios de que são exemplo duas de suas obras mais conhecidas daquela fase: "Torre" e "Ponte". No entanto tais obras ainda guardavam as características da construção racionalista do concretismo, que ele superaria nos anos seguintes, quando sua escultura ganhou um sentido mais aberto e poético, marca de sua produção escultórica desde então.
Mas são muitos os caminhos que ele descobre, as inovações que introduz, sem alarde, em suas esculturas. A descoberta do espaço adquire um significado mais substancial à medida que encontra a unidade interior entre a forma e o vazio, uma relação dialética sutil que tentaríamos expressar dizendo que, desde então, em sua obra, forma e espaço são o verso e o reverso um do outro. E essa íntima unicidade, mais espiritual do que material, impregna suas obras de um significado novo, como se, de súbito, forma e espaço se mostrassem a nós pela primeira vez.
A obra de Franz Weissmann veio enriquecer a escultura brasileira, acrescentando-lhe uma poética de rigor e leveza, rigor e vôo. No momento em que a morte a torna completa -como diria Sartre-, ele, Weissmann, converte-se nela que, desde agora, é o corpo disperso e imortal em que passará a existir.


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