|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A RESENHA DA SEMANA
Subsolos do sucesso
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Em julho de 94, a prestigiosa
"Harper's Magazine" publicou
um conto estranho com o título "A Irmandade da Noite"
-"Sisterhood of Night". O
texto, narrado como um relatório policial, produzia um clima perturbador, equivalente
aos efeitos de um filme de horror na infância ou de uma revistinha de sacanagem no início da adolescência.
Era uma história de meninas
entre 12 e 15 anos que faziam
parte de uma sociedade secreta
numa cidadezinha americana.
Encontravam-se à noite, nos
bosques, sem que ninguém tivesse a mais pálida idéia do que
podiam ter ido fazer ali àquela
hora, embora não faltassem
conjeturas. Tudo sob uma atmosfera enigmática, sombria e
sexual, mas também muito humorada.
De início pairava sobre o interesse do narrador pelo assunto a suspeita de que fosse guiado por um desejo pedófilo, mas
ao final as coisas ficavam ainda
mais complicadas conforme
sua voz passava a se identificar
com o dilema dos pais desnorteados, e ao mesmo tempo a
questioná-los sobre sua falta de
comunicação com as próprias
filhas.
Fiquei com o nome do autor
na cabeça. Comprei todos os
seus livros. Steven Millhauser é
um escritor reconhecido pela
crítica, e que sabe a diferença
entre literatura e enganação,
mas que, talvez por isso mesmo, não faça grande estardalhaço de público ou mídia com
seus livros. É um contista sofisticado que vive com a mulher e
os filhos no norte do estado de
Nova York, onde é professor
universitário. Em 97, seu romance "Martin Dressler", que
narra a ascensão de um "self-made man" em Nova York no
final do século 19, ganhou o Pulitzer.
Engana-se quem, a julgar pelo subtítulo desse romance
agora traduzido no Brasil ("a
história de um sonhador americano"), achar que ele nada
tem das perversões do conto
publicado pela "Harper's Magazine" em 94. O universo do
autor continua o mesmo: o poder da imaginação e das fantasias infantis, com toda a sua
onipotência e carga sexual.
Dressler, o empreendedor
capitalista do livro de Millhauser, não envelhece. Ele nada
mais é do que um homem que
acredita na onipotência dos
seus próprios sonhos infantis,
uma criança com poder de realização. Daí o fascínio que os
parques de diversões, os circos,
os museus de cera, os mágicos
e os ilusionistas exercem sobre
a obra de Millhauser.
Eles estão presentes em várias de suas histórias e são, assim como a propaganda de que
vai se servir Dressler como alavanca do seu sucesso, uma projeção do imaginário infantil na
realidade do mundo adulto, o
sonho transformado em negócio, promovido a espetáculo de
ilusão e artifício.
O relato passo a passo da escalada para o sucesso de um
garoto pobre, filho de um pequeno comerciante, que começa como mensageiro de hotel e
termina grande empresário
com idéias megalômanas que
antecipam o sonho de progresso e modernidade do novo século, passa a ser, assim, um
conto de fadas para adultos, o
mito do "self-made man"
transformado em parábola.
A infância é um território
mágico, mas também perverso. Como é guiado por um
imaginário infantil, o mundo
que Dressler constrói, ao mesmo tempo que tem a mágica do
circo, traz a ambiguidade de
um simulacro.
Em sua onipotência, o empresário vai por fim conceber
um edifício em que pretende
abrigar, nem que seja por simulações, o mundo inteiro: o
Grand Cosmo, cujos subterrâneos, prenunciando uma espécie de Disneylândia, deverão
conter simulacros de tudo o
que existe. De um bazar mouro
a um asilo de loucos e um templo da poesia, povoados por
atores que dão a cor local, representando "pessoas reais".
"Um mundo dentro do mundo, rivalizando com o mundo."
Assim como em "Alice no
País das Maravilhas" (Millhauser tem um conto que se restringe a descrever a queda interminável da personagem de
Lewis Carroll pela toca do coelho para os subterrâneos do
imaginário: "Alice, Falling",
em "The Barnum Museum",
1990), também os subsolos do
Grand Cosmo são inesgotáveis:
"...abaixo do décimo terceiro
pavimento tinha sido construído um labirinto de passagens
interligadas e escadarias que
chegavam a profundidades inimagináveis. E lá, no mundo
por sob o mundo, (...) proliferavam negros jardins da imaginação".
O empreendedor capitalista
criado por Millhauser acredita
que não há fronteiras para a
imaginação. Mas, ao dar livre
curso à sua, termina provando
que, por mais inócuo que pareça, todo sonho de Disneylândia
(ou de América), por ser fruto
de uma imaginação arrojada e
sem freios, trará sempre, no
seu subsolo mais profundo, o
germe dos desejos mais indomados, por mais comprometedores e contraditórios que sejam em relação às simulações
tão inocentes da superfície.
Avaliação:
Livro: Martin Dressler
Autor: Steven Millhauser
Tradutor: Claudio Somogyi
Lançamento: Record
Quanto: R$ 26 (251 págs.)
Texto Anterior: Sexo, drogas e tecno à espanhola Próximo Texto: Literatura - Fernando Sabino: "Como escritor, sou um eterno principiante" Índice
|