São Paulo, Sábado, 24 de Julho de 1999
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A RESENHA DA SEMANA
Subsolos do sucesso

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Em julho de 94, a prestigiosa "Harper's Magazine" publicou um conto estranho com o título "A Irmandade da Noite" -"Sisterhood of Night". O texto, narrado como um relatório policial, produzia um clima perturbador, equivalente aos efeitos de um filme de horror na infância ou de uma revistinha de sacanagem no início da adolescência.
Era uma história de meninas entre 12 e 15 anos que faziam parte de uma sociedade secreta numa cidadezinha americana. Encontravam-se à noite, nos bosques, sem que ninguém tivesse a mais pálida idéia do que podiam ter ido fazer ali àquela hora, embora não faltassem conjeturas. Tudo sob uma atmosfera enigmática, sombria e sexual, mas também muito humorada.
De início pairava sobre o interesse do narrador pelo assunto a suspeita de que fosse guiado por um desejo pedófilo, mas ao final as coisas ficavam ainda mais complicadas conforme sua voz passava a se identificar com o dilema dos pais desnorteados, e ao mesmo tempo a questioná-los sobre sua falta de comunicação com as próprias filhas.
Fiquei com o nome do autor na cabeça. Comprei todos os seus livros. Steven Millhauser é um escritor reconhecido pela crítica, e que sabe a diferença entre literatura e enganação, mas que, talvez por isso mesmo, não faça grande estardalhaço de público ou mídia com seus livros. É um contista sofisticado que vive com a mulher e os filhos no norte do estado de Nova York, onde é professor universitário. Em 97, seu romance "Martin Dressler", que narra a ascensão de um "self-made man" em Nova York no final do século 19, ganhou o Pulitzer.
Engana-se quem, a julgar pelo subtítulo desse romance agora traduzido no Brasil ("a história de um sonhador americano"), achar que ele nada tem das perversões do conto publicado pela "Harper's Magazine" em 94. O universo do autor continua o mesmo: o poder da imaginação e das fantasias infantis, com toda a sua onipotência e carga sexual.
Dressler, o empreendedor capitalista do livro de Millhauser, não envelhece. Ele nada mais é do que um homem que acredita na onipotência dos seus próprios sonhos infantis, uma criança com poder de realização. Daí o fascínio que os parques de diversões, os circos, os museus de cera, os mágicos e os ilusionistas exercem sobre a obra de Millhauser.
Eles estão presentes em várias de suas histórias e são, assim como a propaganda de que vai se servir Dressler como alavanca do seu sucesso, uma projeção do imaginário infantil na realidade do mundo adulto, o sonho transformado em negócio, promovido a espetáculo de ilusão e artifício.
O relato passo a passo da escalada para o sucesso de um garoto pobre, filho de um pequeno comerciante, que começa como mensageiro de hotel e termina grande empresário com idéias megalômanas que antecipam o sonho de progresso e modernidade do novo século, passa a ser, assim, um conto de fadas para adultos, o mito do "self-made man" transformado em parábola.
A infância é um território mágico, mas também perverso. Como é guiado por um imaginário infantil, o mundo que Dressler constrói, ao mesmo tempo que tem a mágica do circo, traz a ambiguidade de um simulacro.
Em sua onipotência, o empresário vai por fim conceber um edifício em que pretende abrigar, nem que seja por simulações, o mundo inteiro: o Grand Cosmo, cujos subterrâneos, prenunciando uma espécie de Disneylândia, deverão conter simulacros de tudo o que existe. De um bazar mouro a um asilo de loucos e um templo da poesia, povoados por atores que dão a cor local, representando "pessoas reais". "Um mundo dentro do mundo, rivalizando com o mundo."
Assim como em "Alice no País das Maravilhas" (Millhauser tem um conto que se restringe a descrever a queda interminável da personagem de Lewis Carroll pela toca do coelho para os subterrâneos do imaginário: "Alice, Falling", em "The Barnum Museum", 1990), também os subsolos do Grand Cosmo são inesgotáveis: "...abaixo do décimo terceiro pavimento tinha sido construído um labirinto de passagens interligadas e escadarias que chegavam a profundidades inimagináveis. E lá, no mundo por sob o mundo, (...) proliferavam negros jardins da imaginação".
O empreendedor capitalista criado por Millhauser acredita que não há fronteiras para a imaginação. Mas, ao dar livre curso à sua, termina provando que, por mais inócuo que pareça, todo sonho de Disneylândia (ou de América), por ser fruto de uma imaginação arrojada e sem freios, trará sempre, no seu subsolo mais profundo, o germe dos desejos mais indomados, por mais comprometedores e contraditórios que sejam em relação às simulações tão inocentes da superfície.


Avaliação:    


Livro: Martin Dressler Autor: Steven Millhauser Tradutor: Claudio Somogyi Lançamento: Record Quanto: R$ 26 (251 págs.)


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