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CONTARDO CALLIGARIS
O submarino russo: mortes inúteis
Passei a semana tentando me
apegar a outros pensamentos.
Inútil. A mesma imagem voltava
e insistia sempre: o submarino
russo, parado, silencioso e gélido
no fundo do mar.
Nos primeiros dias, a história
parecia ser apenas mais um
exemplo patético da decadência
russa. Nos jornais, na rua, na Internet, nos táxis, onde quer que
houvesse conversa, todos falavam
disso: a tecnologia da ex-URSS é
sucata. Na verdade -muitos
acrescentavam- sempre foi sucata. Só o Ocidente não sabia. O
Kursk devia ser uma lata de conserva disfarçada: talvez fosse esse
o segredo que os russos queriam
tanto esconder. Falava-se também dos efeitos infelizes dos orgulhos nacionais mal colocados. A
indignação com o governo russo
era grande: por que não pedem
ajuda? Para não confessar suas
dificuldades? Ou para não mostrar ao mundo sabe Deus qual arma secreta e estapafúrdia -escondida no ventre do Kursk? Pudores irrisórios e segredos de polichinelo.
Mas rapidamente essas conversas definharam. Foram substituídas por uma grande pena e por
uma torcida mundial para que
não estivessem todos mortos. De
resto trágico da Guerra Fria e de
suas mentiras, o Kursk parecia se
transformar em símbolo de algo
maior, algo que nos concerniria a
todos -Guerra Fria ou não.
Um jornal de Murmansk começou a publicar pequenos necrológios dos marinheiros, feitos de últimas cartas aos pais, lembranças
de amigos e parentes etc. Alguns
jornais europeus traduziram. Era
uma espécie de cemitério de homens comuns, uma nova "Antologia de Spoon River", o poema
dos mortos quaisquer. Alguns pareciam até orgulhosos de estar na
Marinha, mas ninguém, nem na
lembrança depois de morto, recorria ao tipo de retórica belicosa
que poderia dar sentido à sua
morte e à de seus companheiros.
Nessa altura, comecei a ser perseguido pelas letras de uma música. Aconteceu assim: li uma notícia sem interesse sobre os Beatles
(o que sobra deles) e houve uma
espécie de curto-circuito. Sem
querer, passeando pelas ruas na
sexta-feira, comecei a cantarolar,
na melodia de "Yellow Submarine": "We all live in a russian submarine, russian submariiiiine"
(Vivemos todos num submarino
russo, submarino russo).
Com isso, a visão já insistente
do submarino pousado no fundo
do mar ficou mais lúgubre ainda:
o ritmo me parecia vir de lá, como
se os sobreviventes no escuro batessem contra a parede metálica
ao ritmo da música e cantassem
num coro de baixos. Oniricamente, eles pareciam nos chamar.
Como a música não me deixava
tranquilo, decidi levá-la a sério.
Respeitando meu automatismo
mental, disse para mim mesmo:
está bem, acredito, somos todos
marinheiros do Kursk, mas por
quê? Quem sabe respondendo eu
conseguisse entender como o destino do submarino russo conquistou a imaginação popular do
mundo inteiro.
O fato é que este gigantesco tubo
inerte, mistura de vibrador quebrado com sarcófago, parece resumir nossa relação com a tecnologia. O avanço tecnológico é a melhor expressão de nossa potência,
uma espécie de gloriosa ereção fálica. Olhe só, vamos à Lua, circulamos de naveta espacial, viajamos de supersônico, conseguimos
energia atômica limpa e barata
etc. Somos poderosos.
Acontece que esse falo tecnológico se transforma facilmente numa tumba. É o Concorde caindo
ou a naveta espacial explodindo.
O vôo TWA 800 ou então Tchernobil.
Tempo atrás, alguém diria que
essas são as vítimas cobradas pelo
progresso. Mas ainda há quem
pense que o progresso é um valor?
Inventamos a morte inútil. É diferente da morte acidental, produzida por um relâmpago, um
terremoto, uma bala perdida ou
mesmo a raiva de um assaltante.
Diferente, porque nos vários submarinos nucleares da vida embarcamos orgulhosa e voluntariamente. A morte inútil também
se distingue da morte justificada
por uma causa mais ou menos
nobre. Paradoxalmente, ela não é
acidental e não tem causa final.
Morremos de morte inútil
quando morremos como consequência do funcionamento de
nossa potência. Sem outros fins.
Entendo que as autoridades
russas gostem da idéia de que o
Kursk tenha afundado depois de
uma colisão com um submarino
americano ou britânico. Na verdade, todos preferiríamos que assim fosse. Esse restinho de Guerra
Fria nos permitiria pensar no
Kursk como um túmulo de bravos
que morreram para defender a
pátria, a honra ou coisa análoga.
Seriam mortes por causa nobre.
Ora, o Kursk é sobretudo um túmulo para as razões que durante
anos deram sentido à morte e que
hoje estão faltando no mercado.
Não há porque se queixar da diminuição dos motivos para sacrifícios supremos. Mas isso nos deixa com um fenômeno novo: mortes estranhas, consequências de
exercícios abstratos de potência
tecnológica que não alveja mais
nem a guerra nem a defesa nem a
conquista.
Engraçado, décadas atrás uma
geração lançou ao mar um psicodélico submarino amarelo também para lutar contra essa paixão tecnológica abstrata. Pena
que não tenha chegado a tempo
ao mar de Barents.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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