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CARLOS HEITOR CONY
A sobrevivência da palavra escrita e do caráter humano
Em tempos de linguagem
virtual, com a predominância da informática como espinha
dorsal da comunicação humana,
questiona-se o futuro da palavra
escrita, que começou a ser impressa na pedra das cavernas, passou
pelos blocos de argila, pela pele
dos animais e pelo caule dos papiros até ganhar mobilidade e universalidade com o papel dos chineses e com os tipos móveis de
Guttemberg.
A tecnologia, somando todos os
ancestrais da linguagem, já caminha para a voz humana que,
além de servir de base para a comunicação oral, em breve será
virtualizada e comandará os
computadores e todas as operações digitalizadas. E já garantem
que esse comando em breve será
feito sem necessidade da voz, bastando o pensamento, que será informatizado e acionará o universo eletrônico, que está cada vez
mais próximo.
Pensaremos uma pergunta e
sensores digitalizados a transmitirão ao destinatário, que a receberá quase esotericamente
-"sensorialmente", na extensão
da palavra. Pensará na resposta
que será enviada pelo mesmo caminho. Exemplo de uma pergunta: "Você quer ser minha?". Uma
resposta provável: "Quero". Isso
tudo (e que tudo maravilhoso)
sem a necessidade de palavras e
de voz. Os ufólogos afirmam que é
mais ou menos assim que os seres
extraterrestres se comunicam.
Talvez eu não viva o bastante para chegar a essa instantaneidade.
Mesmo assim, deixo a pergunta
ortodoxamente impressa. E fico à
espera da resposta, adiantando
que, provisoriamente, qualquer
meio serve.
Apesar do avanço tecnológico,
sempre haverá uma dúvida sobre
a eficiência e a durabilidade da
comunicação virtual. A sociedade
ainda exigirá, por muito tempo, a
grafia impressa, o chamado preto
no branco. Teremos de ir à Polícia
Federal para assinar o passaporte, aos tabeliões para assinar os
testamentos e escrituras etc. etc.
Contudo a linguagem literária,
feita de letras e símbolos gráficos
tradicionais, deverá continuar
ainda que marginal à linguagem
oficial, que será virtualizada. Assim como a fotografia não aboliu
o desenho, o retrato ou a paisagem pintada, a palavra impressa
continuará como poderoso elemento da comunicação humana.
Daí que Pilatos mandou colocar na cruz do Calvário um ancestral do outdoor moderno, indicando que ali, pregado no madeiro, estava Jesus de Nazaré, Rei dos
Judeus, cartaz que os pintores da
Renascença reduziram para as
iniciais "INRI". Os judeus não
gostaram. Então, aquilo, um corpo esquálido e mortificado, vencido pela morte, seria o rei deles?
Pilatos respondeu: "O que escrevi
está escrito". Em latim: "Quod
scripsi scripsi".
Pulando do Calvário para as esquinas das nossas cidades, a frase
de Pilatos foi adotada pelos banqueiros do jogo do bicho. Eles imprimem nos talões que guardam
a fé dos apostadores: "Vale o escrito". É a força da palavra impressa que jamais passará.
"Passará o céu e a terra" -disse o mesmo Jesus antes de ser colocado na cruz-, "mas as minhas palavras não passarão".
Muita gente condena gramaticalmente a frase, achando que o
Mestre dos Mestres deveria ter dito "passarão o céu e a terra". Não
sei, não lembro mais, mas parece
que Vieira tem um comentário a
respeito disso.
De qualquer forma, ficará valendo por muito tempo ainda, e
talvez para sempre, aquele ditado
segundo o qual as palavras voam
e a escrita permanece. Citando
mais uma vez em latim: "Verba
volent, scripta manent".
Há também o ditado que não
deve ser latino, mas vernáculo
mesmo: "Escreveu não leu, o pau
comeu". E temos a expressão que
todos usamos quando queremos
afirmar alguma coisa de forma
peremptória: "Assino em baixo".
Num dos capítulos mais importantes e bonitos de "Ulisses", Joyce fala na "assinatura de todas as
coisas".
Ao tempo de Pilatos e de James
Joyce, a linguagem virtual estava
longe. Mas, além da realidade física, da palavra impressa, ela servia de símbolo da identidade e da
perenidade da comunicação entre os seres humanos.
Mas os homens, segundo Iago,
são homens. Sempre dão um jeito
de melar as coisas, até mesmo
aquilo que escrevem. Muitos escrevem e depois negam o que escreveram, dizendo que nunca escreveram aquilo, alegando que a
escrita é apócrifa, forjada por adversários. Um recurso primário,
por sinal.
Outros são mais sofisticados.
Escrevem e, na impossibilidade
de negar o que escreveram, pedem que esqueçam o que escreveram. Pilatos podia ter partido para essa, pedindo aos judeus que
esquecessem a frase que ele mandou botar em cima da cruz do
Calvário. Também os bicheiros
poderiam alegar que o apostador
não apostou naquele milhar ou
naquela centena. Que esquecessem o talão.
Mas tanto Pilatos como os bicheiros, por motivos diferentes,
assumiram o que escreveram. O
primeiro reafirmou que aquilo
que escreveu está escrito. Os segundos garantem que vale o escrito.
No limiar da era virtual, com o
advento da linguagem digitalizada, o processo da comunicação será sempre alterado. Mas o caráter
bom ou mau do seu humano será
o mesmo.
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