São Paulo, sexta-feira, 24 de agosto de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

A sobrevivência da palavra escrita e do caráter humano

Em tempos de linguagem virtual, com a predominância da informática como espinha dorsal da comunicação humana, questiona-se o futuro da palavra escrita, que começou a ser impressa na pedra das cavernas, passou pelos blocos de argila, pela pele dos animais e pelo caule dos papiros até ganhar mobilidade e universalidade com o papel dos chineses e com os tipos móveis de Guttemberg.
A tecnologia, somando todos os ancestrais da linguagem, já caminha para a voz humana que, além de servir de base para a comunicação oral, em breve será virtualizada e comandará os computadores e todas as operações digitalizadas. E já garantem que esse comando em breve será feito sem necessidade da voz, bastando o pensamento, que será informatizado e acionará o universo eletrônico, que está cada vez mais próximo.
Pensaremos uma pergunta e sensores digitalizados a transmitirão ao destinatário, que a receberá quase esotericamente -"sensorialmente", na extensão da palavra. Pensará na resposta que será enviada pelo mesmo caminho. Exemplo de uma pergunta: "Você quer ser minha?". Uma resposta provável: "Quero". Isso tudo (e que tudo maravilhoso) sem a necessidade de palavras e de voz. Os ufólogos afirmam que é mais ou menos assim que os seres extraterrestres se comunicam. Talvez eu não viva o bastante para chegar a essa instantaneidade. Mesmo assim, deixo a pergunta ortodoxamente impressa. E fico à espera da resposta, adiantando que, provisoriamente, qualquer meio serve.
Apesar do avanço tecnológico, sempre haverá uma dúvida sobre a eficiência e a durabilidade da comunicação virtual. A sociedade ainda exigirá, por muito tempo, a grafia impressa, o chamado preto no branco. Teremos de ir à Polícia Federal para assinar o passaporte, aos tabeliões para assinar os testamentos e escrituras etc. etc.
Contudo a linguagem literária, feita de letras e símbolos gráficos tradicionais, deverá continuar ainda que marginal à linguagem oficial, que será virtualizada. Assim como a fotografia não aboliu o desenho, o retrato ou a paisagem pintada, a palavra impressa continuará como poderoso elemento da comunicação humana.
Daí que Pilatos mandou colocar na cruz do Calvário um ancestral do outdoor moderno, indicando que ali, pregado no madeiro, estava Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus, cartaz que os pintores da Renascença reduziram para as iniciais "INRI". Os judeus não gostaram. Então, aquilo, um corpo esquálido e mortificado, vencido pela morte, seria o rei deles? Pilatos respondeu: "O que escrevi está escrito". Em latim: "Quod scripsi scripsi".
Pulando do Calvário para as esquinas das nossas cidades, a frase de Pilatos foi adotada pelos banqueiros do jogo do bicho. Eles imprimem nos talões que guardam a fé dos apostadores: "Vale o escrito". É a força da palavra impressa que jamais passará.
"Passará o céu e a terra" -disse o mesmo Jesus antes de ser colocado na cruz-, "mas as minhas palavras não passarão". Muita gente condena gramaticalmente a frase, achando que o Mestre dos Mestres deveria ter dito "passarão o céu e a terra". Não sei, não lembro mais, mas parece que Vieira tem um comentário a respeito disso.
De qualquer forma, ficará valendo por muito tempo ainda, e talvez para sempre, aquele ditado segundo o qual as palavras voam e a escrita permanece. Citando mais uma vez em latim: "Verba volent, scripta manent".
Há também o ditado que não deve ser latino, mas vernáculo mesmo: "Escreveu não leu, o pau comeu". E temos a expressão que todos usamos quando queremos afirmar alguma coisa de forma peremptória: "Assino em baixo". Num dos capítulos mais importantes e bonitos de "Ulisses", Joyce fala na "assinatura de todas as coisas".
Ao tempo de Pilatos e de James Joyce, a linguagem virtual estava longe. Mas, além da realidade física, da palavra impressa, ela servia de símbolo da identidade e da perenidade da comunicação entre os seres humanos.
Mas os homens, segundo Iago, são homens. Sempre dão um jeito de melar as coisas, até mesmo aquilo que escrevem. Muitos escrevem e depois negam o que escreveram, dizendo que nunca escreveram aquilo, alegando que a escrita é apócrifa, forjada por adversários. Um recurso primário, por sinal.
Outros são mais sofisticados. Escrevem e, na impossibilidade de negar o que escreveram, pedem que esqueçam o que escreveram. Pilatos podia ter partido para essa, pedindo aos judeus que esquecessem a frase que ele mandou botar em cima da cruz do Calvário. Também os bicheiros poderiam alegar que o apostador não apostou naquele milhar ou naquela centena. Que esquecessem o talão.
Mas tanto Pilatos como os bicheiros, por motivos diferentes, assumiram o que escreveram. O primeiro reafirmou que aquilo que escreveu está escrito. Os segundos garantem que vale o escrito.
No limiar da era virtual, com o advento da linguagem digitalizada, o processo da comunicação será sempre alterado. Mas o caráter bom ou mau do seu humano será o mesmo.



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