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Crítica
Salles usa mordomo como espelho e faz um ótimo filme sobre si mesmo
CRÍTICO DA FOLHA
Em "Santiago" existe um
filme e, sobre ele, um
outro filme. O primeiro
diz respeito ao antigo mordomo da família Moreira Salles e
foi feito em 1992 por João Moreira Salles.
Havia razão para o interesse
por Santiago: de sua paixão pela
aristocracia ao trabalho de copista, trata-se de um homem
singular. No entanto, Salles não
conseguiu dar forma à série de
pensamentos e afetos comunicados pelo ex-empregado de
sua família. Havia ali um passado que falava muito ao autor do
filme, mas ao que parece não
existia maneira de transformá-lo em um objeto estético, de
montá-lo.
É apenas em 2007 que o filme fica pronto. Já não é mais
-ou já não é apenas- um filme
sobre Santiago, o mordomo,
mas um extenso questionamento sobre o próprio autor e
as razões que o levaram a filmar
os locais que filmou e a pessoa
que filmou, já que Santiago
evoca a casa onde Salles passou
sua infância e adolescência.
O que mais se comenta, o que
mais o próprio cineasta enfatiza a respeito deste filme é a "luta de classes" implícita no ato
de alguém tomar como personagem seu próprio mordomo.
Não há razão para tanto, mas
em quase todo o filme, em preto-e-branco, Santiago aparece
cercado por maçanetas, portas,
objetos diversos. O enquadramento o oprime, assim como
patrões podem oprimir a seus
empregados. Mas não há luta
de classes. Santiago é uma espécie de agregado da família.
Santiago é também uma espécie de memória auxiliar da
família Moreira Salles, e é nessa
medida que mais interessa a
João. É como se este, partindo
em busca do tempo perdido,
precisasse de um apoio, do
apoio desse memorioso capaz
de não só lembrar das coisas,
como de mitificá-las (a mansão
de Walter Moreira Salles é, para ele, o duplo de um palácio
florentino). Mas a memória
pertence ao cineasta, a João.
Tempo para amadurecer
Não sendo um filme sobre
Santiago, o mordomo, resta intacta a questão: por que tanto
tempo para conseguir montá-lo? Algo se passou. A morte de
Santiago, entre elas. Foi também o tempo de amadurecer a
autocrítica, de admitir que, afinal, João Moreira Salles fazia
um filme sobre si mesmo. E que
se tratava de recuperar o seu
passado, e não o de Santiago,
que vive num passado de que é
despojado. Tanto que, no único
momento em que Santiago se
dispõe a dizer algo de realmente pessoal, o cineasta deixa a câmera desligada: não era Santiago, nem a estirpe de "malditos"
a que diz pertencer que importam. O mordomo, afinal um
agregado, era só o espelho.
Um filme tão íntimo, em que
o documentarista busca a si
próprio através de outro, por
que deveria nos interessar? Em
primeiro lugar, porque qualquer um de nós busca, também,
o seu passado nos objetos, nas
pessoas, espaços e construções
que freqüentou. Em segundo
lugar, porque é uma natureza
do cinema que Salles nos dá a
ver: a da montagem. Se a operação de filmar é um impulso, a
segunda, de montagem, consiste em dar forma, ao articular as
imagens. Articular a quê? Essa
a questão que embatucou o documentarista por quase 15
anos. Que operação é essa? É a
de entendimento, de articulação entre as imagens captadas e
o passado a que se procura dar
forma. Materializar o passado é
a proeza que "Santiago" consegue executar.
(INÁCIO ARAUJO)
SANTIAGO
Produção: Brasil, 2005
Direção: João Moreira Salles
Quando: em cartaz no Espaço Unibanco
Avaliação: ótimo
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