São Paulo, sexta-feira, 24 de agosto de 2007

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Cinema/estréias - Crítica/"O Grande Chefe"

Em comédia rasgada, Von Trier questiona a noção de teatralidade

"O Grande Chefe" conta a história de ator que é contratado para interpretar o papel de diretor-geral de uma empresa

Divulgação
Jens Albinus e Iben Hjejle na comédia "O Grande Chefe", de Lars von Trier, que estréia hoje


INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Lars von Trier não é autor de um gênero só. Como um velho artesão hollywoodiano, ele pode alternar o melodrama de "Dançando no Escuro" (2000), o didatismo de "Dogville" (2003) ou a comédia deste "O Grande Chefe", sempre com desenvoltura.
À diferença dos antigos, Von Trier faz cinema muito pessoal, de maneira que pode fazer um "O Grande Chefe" que seja o oposto de seus trabalhos recentes. Se em "Dogville"/"Manderlay" a representação não era questionada, já que inexistia qualquer tentativa de imitação da realidade (uma casa não era uma casa, mas a sua planta), aqui é a teatralidade que está posta em questão.
Um ator (Jens Albinus) é contratado para fazer o papel de diretor-geral de uma empresa. Trata-se de fingir que está vindo dos EUA, de onde comanda os negócios, por e-mails. Na verdade, o homem que o contratou, Ravn (Peter Ganteler), é o dono da empresa.
Mas ele se sente mais à vontade diante dos gerentes fazendo-se passar por pau-mandado desse Grande Chefe: isso lhe permite agir com maior liberdade.
A peça que imagina é simples: o Grande Chefe passa a Ravn uma procuração dando-lhe direitos para vender a empresa. Mas o comprador, um islandês desconfiado, não topa negociar com procuradores.
O papel do ator se amplia e ele começa a conviver com os gerentes. Na medida em que as pessoas passam a ter com ele um convívio real, as relações se transformam. O ator vai se tornando uma espécie de Kagemusha do filme de Kurosawa: o sujeito contratado para representar o papel do chefe de clã ferido. A diferença é que aqui não há nenhum chefe. Ele vai ocupar um lugar vazio.
Incongruências e inverossimilhanças não faltam nesta comédia. Von Trier não dá bola para isso, da mesma forma como, vivendo num mundo poluído por imagens banais, não se esforça para compor imagens cuidadosas. O descuido é sua marca, assim como os cortes ostensivos no interior do plano.
Trata-se de desorganizar uma ordem formal, a do bem-feito. Dramaticamente, trata-se de desorganizar a relação ator/personagem, dando ao primeiro o papel de um personagem inexistente, ou seja, reconduzindo o personagem à sua condição de signo.
Com isso, a crença na possibilidade de o ator encarnar o personagem (a suposição de que Albinus vive Kristoffer, ou Svend, ou Grande Chefe) -que baliza a relação dos espectadores com a tela- se esboroa.
O que se põe no lugar? Essa questão é sempre complicada com Von Trier, pois a parte destrutiva é sempre eficiente, mas a segunda, de reconstrução das relações do espectador com o filme em novo parâmetro, nem sempre. Se funcionou em "Dançando no Escuro", pois as loucuras do roteiro ajudavam a platéia a partilhar o drama de Björk, aqui são essas loucuras que nos fazem rir.
Exemplo: entre as moças da companhia há uma a quem ele se declara homossexual, e outra com quem afirma querer se casar. Essa multiplicação da subjetividade, típica da era internet, introduzirá no filme o incômodo e o inesperado, ou seja, este humor rasgado de comédia "slapstick". Que, por sinal, Lars von Trier demonstra dominar tão bem quanto o melodrama.

O GRANDE CHEFE
Direção:
Lars von Trier
Produção: Dinamarca/Suécia/Islândia/Itália/França/Noruega/Finlândia/Alemanha, 2006
Com: Jens Albinus, Peter Ganteler
Quando: em cartaz nos cines Reserva Cultural, Sala UOL e circuito
Avaliação: ótimo


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