São Paulo, Terça-feira, 24 de Agosto de 1999
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ARNALDO JABOR
Brasil chupa o atraso como um Chicabon

Desta vez, fui eu quem ligou para o Nelson Rodrigues. Estava em desespero com o Brasil e a América Latina nesta semana de golpistas. Liguei para um número infinito: 00008888. O tilintar foi suave como uma trombeta de arcanjo e, com um suspiro de alívio, reconheci a voz do meu amigo.
- Nelson!... Você atende o próprio telefone aí no céu, como se fosse o contínuo de si mesmo?
- Aqui no céu não tem colher de chá... Os anjinhos foram terceirizados...
- Nelson, Brasília está tomada! A gente levou 20 anos na ditadura, conseguiu a democracia e agora a oposição quer o golpe!
- É... Estão caçando o FHC a pauladas, como uma ratazana grávida... Tem muito jornalista que acorda de manhã, toma café, beija a mulher e vai espinafrar o FHC... Antigamente, o bom emprego era fazer concurso para o Banco do Brasil; hoje, o negócio é esculhambar o FHC...
- Por que tanto ódio? Por que ele quis reformar o Estado?...
- O FHC mexeu em víboras profundas, dentro da alma do brasileiro... Ele achou que ia ser fácil... Brasileiro perdoa tudo, menos que mexam em seu atraso... A gente vive agarrado ao próprio fracasso, lambendo-o como um Chicabon. O atraso é desejado, rapaz... Eu já disse isso e repito: subdesenvolvimento não se improvisa; é obra de séculos...
-O FHC errou muito... Foi confuso, vacilante...
- Seu erro maior foi acreditar na tal "razão"... Ninguém sabe o que é isso no Brasil... Que "razão", que nada... Consciência social de brasileiro é medo da polícia. O sujeito quis mexer em coisas tremendas, como sinecuras, estatais, juízes... O brasileiro mais pé-rapado acha que o Estado é propriedade dele, mesmo sabendo que só meia dúzia mama... Para conseguir fazer a tal "revolução silenciosa", o FHC teria de ser o "cafajeste do smoking impecável!"...
- O que é isso?
- O "cafajeste do smoking impecável"? Foi um sujeito que eu vi numa festa... A mulher esculhambava ele, xingava, humilhava e ele... Impávido, ouvindo em silêncio.
Quando a mulher se cansou de xingar, ele deu-lhe uma rutilante bofetada na cara e a sujeita caiu chorando aos pés dele, apaixonada, enquanto a bofetada ainda ecoava na sala... O FHC tinha de ser assim, o impecável cafajeste... Até o ACM iria beijar-lhe as mãos...
- Pois se mesmo o Itamar é temido...
- Ahh... Eu tenho ternura pelo Itamar... Ele, de chapéu de soldado-cabeça-de-papel e espingardinha de rolha, está genial... A única coisa que ele fez até agora foi um mictório para a PM do palácio... Mas, no Brasil, não precisa governar; basta "parecer". Itamar subiu no caixote de querosene e declarou guerra a FHC. Já apareceram milhões de cretinos aplaudindo e babando na gravata. O Itamar ressuscitou a doce burrice nacional. As oposições sem programa vão seguir o Itamar igual cachorro de batalhão, latindo e abanando o rabo no ritmo da música...
- É, mas a situação está gravíssima. O que vai acontecer com a democracia?...
- Nada, rapaz. No Brasil, nada acontece -só quando a gente está dormindo... Tudo que a oposição fez até hoje foi avacalhar com o presidente... A obsessão da esquerda não é o Marx; é o FHC.
Nunca vi tanta paixão ao avesso... Você viu o Ronaldo Caiado com aquele riso de anúncio de dentista e o José Genoino, varado de luz como um São Francisco de vitral? Os dois estavam abraçadinhos feito Romeu e Julieta... A esquerda brasileira perdeu a cabeça... Vão acabar destruindo orelhão ou rasgando poltrona de cinema com gilete... Eles não aprendem, mesmo agora que o Lenin vai ser finalmente enterrado feito sapo de macumba...
- E com essa absolvição dos PMs do Pará, o MST invade o Planalto...
- Sabe por que absolveram? Porque os PMs somos nós!
- Como assim? -pergunto, como em filme B dublado.
- Porque os PMs estavam cumprindo nossas ordens secretas e impalpáveis... Tudo conspirava para aquele massacre: juízes, fazendeiros e aqueles pobres soldados, quase iguais aos sem-terra... Como você disse num artigo: "os soldados matavam neles sua vida miserável que os fazia estar ali matando eles..."
- Nelson, você me lê!?
- Às vezes... Mas precisa cortar adjetivos... Você queria o quê? Claro que eles iam absolver... Os PMs somos todos nós...
- Eu estou meio apocalíptico, Nelson... Vai ruir tudo... Zona no Brasil, o Equador vai explodir, guerrilheiros loucos de pó já estão falando em "novo Vietnã" -pode? Os americanos vão invadir essa zorra...
- Que nada, rapaz... Americano é malandro... Eles só pensam em freguês... O Keynes ficou meu amigo aqui no céu e me explicou que eles são todos mercadores, vendedores de tapete. Estão apavorados de perder dinheiro, se a América Latina ficar roendo rapadura no meio-fio e não comprar mais nada. Agora, que vai voltar tudo para trás, vai!... Você já viu a cara do Hugo Chavez, o ditador da Venezuela?... Parece porteiro de boate da praça Mauá... Eu vejo o Chavez e tenho vontade de lhe dar gorjeta... Pois o nosso Lula não falou que o Chavez é o maioral?... Vai começar tudo de novo... A Colômbia toda vai fugir para Manaus vendendo cocaína em saquinho de amendoim... Até os jacarés vão cheirar pó!... Vai ter golpe com milico de novo, populismo, hiperinflação, tudo!... Esta é a nossa verdade profunda: somos um continente de vira-latas, e vamos entrar no século 21 vendendo chicletes no sinal. O brasileiro tem angústia da vitória. O Getúlio Vargas passou aqui agorinha, feliz feito um coelhinho de desenho animado...
- E o que será de nós?
- Vai ser bom para acabar com esse negócio de celular, de BMW, de supermercado... Bom é armazém, carro velho, telefone preto, geladeira branca... As grã-finas de narinas de cadáver e os ladrões de casaca precisam tomar um susto. Precisamos errar até o fim para saber quem somos. Só depois da tragédia total, o Brasil renascerá. Depois dos cacos do FMI, depois da grande desgraça, o Brasil vai plantar goiabeiras e samambaias no fundo do abismo. E aí, satisfeitos de tanta ignomínia, voltaremos à vida.
- Deus o abençoe, Nelson...


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