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MÚSICA
"Powder Her Face", do compositor inglês de 27 anos, sai em CD duplo e agita o mundo erudito
Thomas Adès põe sexo oral em ópera
ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas
Ele é professor de composição
na Royal Academy of Music, em
Londres, desde 1997. No ano passado, assumiu a direção do renomado Festival de Aldeburgh e um
posto de regente do Birmingham
Contemporary Music Group.
Recentemente apareceu como
solista de piano em seu próprio
"Concerto Conciso", no Carnegie
Hall. Uma nova ópera estréia em
2001, no Covent Garden; antes
disso, outra peça, encomendada
pela Filarmônica de Nova York.
Aos 27 anos de idade, Thomas
Adès é o nome mais comentado
de uma nova geração de compositores, e sua música deve conquistar um público amplo agora, com
o lançamento em disco de sua
ópera "Powder Her Face". "É a
música do futuro", na opinião
abalizada do crítico Paul Griffiths.
O futuro dura muito tempo e às
vezes demora para chegar. Mas
"Powder Her Face" já é o bastante
para definir uma música do presente: complexa, mas direta, variada em propósito e estilo, usando de tudo um pouco e fazendo
do pouco tudo. Sofisticação, aqui,
não é entrave para o arrojo: Adès
tem a confiança improvável de
quem chega tarde na história,
mas ainda tem a coragem quase
inocente de reinventar o mundo.
Ele está para a música como seu
conterrâneo Alan Hollinghurst
para a literatura e Peter Greenaway para o cinema. Coube a ele
dar uma voz inglesa à imaginação
afetiva e sexual e a novas responsabilidades em formação, nesse
momento ainda mal-definido como fim de século. A definição não
é fácil mesmo e não se restringe a
identificar linhagens.
No caso dessa ópera, as referências musicais e dramáticas a predecessores como Alban Berg,
Kurt Weil e Benjamin Britten são
explícitas e reconhecidas por todos os comentadores. O próprio
compositor nomeia os húngaros
Ligeti e Kurtág como outros modelos. Uma homenagem ao Stravinski de "The Rake's Progress"
pode ser menos óbvia, mas também não ajuda a situar "Powder
Her Face" para além da genealogia de influências.
De tudo um pouco, e no pouco
tudo: sem ouvir a música, a frase
pode soar como apologia do ecletismo. Tanto mais quando se sabe
que Adès usa o tango de Piazzola
no prelúdio e no epílogo; e uma
canção à moda dos anos 30 como
momento de exaltação nostálgica
da heroína.
Mas em nenhum desses casos
pode-se falar em pastiche, ou colagem. Uma música entra em outra com força de evocação, mas
transformada pela pressão de outro ambiente e outras ambições.
"Não se pode compor de leve, como também ninguém fica grávida
de leve", declarou Adès numa reportagem da revista "New Yorker" no ano passado. Que a gravidade do compositor não obstrua
sua leveza de meios, nem a ironia,
e o humor, e a fluência, é uma medida de seu temperamento, musicalmente generoso.
"Powder Her Face" significa literalmente "Passar Pó no Rosto
Dela", mas com acentos de aristocracia antiga: "pó-de-arroz". A
ópera de câmara (quatro solistas,
clarinetes, sax, trompa, trumpete
e trombone; harpa, acordeão e
piano; percussão e quinteto de
cordas) estreou em 1995.
Adès, na época com 24 anos, já
firmara seu nome com obras como "Living Toys", um poema sinfônico, com personagens como
um toureiro espanhol e o computador HAL de "2001"; um quarteto de cordas, "Arcadiana"; e
"...but all shall be well", interpretada pela Halle Orchestra sob a regência de Kent Nagano.
O libreto da ópera, escrito pelo
crítico inglês Philip Hensher, se
concentra na figura real de Margareth Whigham,conhecida como Mrs. Sweeny ou Duquesa de
Argyll. Linda, rica e famosa, Mrs
Sweeny faz rima com Mussolini
na letra de "You're the Top", de
Cole Porter. Não haveria maior
renome possível, não fosse um escândalo: seu divórcio do duque,
em 63, ficou célebre, quando fotos
dela praticando sexo oral foram
exibidas no tribunal. (Graças a
uma imperfeição, ficou provado
que o homem que aparece nas fotos, sem rosto, não era um alto
funcionário do governo.)
A duquesa perdeu a causa e foi
censurada pelo juiz por seu "apetite sexual degradado"; mas não
perdeu a riqueza nem a fama. Ou
pelo menos não até os últimos
anos, quando acabou expulsa do
hotel onde morava. Veio a morrer
sozinha, num asilo, em 1993.
Tendo como ponto de partida e
término a última hora da duquesa
no hotel, em 1990, "Powder Her
Face" salta de 1934, passando pelas décadas de 50 e 70, em árias,
duetos e trios que vão compondo
a história de frivolidade, arrogância, isolamento, falsidade, ganância e "sexualidade degradada"
dessa "nova Helena" de nenhuma
Tróia. Destaca-se a primeira cena
de sexo oral na história da ópera,
um tour de force de sopros, glissandos e gemidos.
Mas aqui, como na partitura toda, o mistério de Adès é fazer
soar, naquilo que soa, uma outra
música, que talvez só possa mesmo ser ouvida por contraste, sem
som, para além de qualquer capacidade de representação. "Powder Her Face" é a grande ópera de
amor do nosso tempo: ainda mais
raro na música do que fora, o
amor é o tema retumbante dessa
história da falta de amor.
Toda a impureza de estilo, nessa
música que não é nem tonal, nem
atonal, nem de vanguarda, nem
conservadora, nem "inglesa",
nem não-inglesa, cumpre um
propósito análogo. No centro
imaginário, Adès concentra ecos
de uma pureza tanto afetiva
quanto musical (e literária: as ambivalências do libreto, entre o verso popular e o teatro mais refinado, não poderiam ser mais adequadas). Ela é forte o bastante para se travestir de melodrama, sem
perder a leveza ou a gravidade do
drama, nem da melodia.
Desde o início, então, com a duquesa entoando o elogio do seu
perfume -um aroma "que dura
para sempre, como nenhuma outra coisa"- até o final, quando a
última garrafa vazia de "Joy" é espatifada contra a parede, o que se
anuncia e se esconde é "o sentimento divino" que música alguma é capaz de cantar, mas só a
música é capaz de não cantar dessa maneira. O fracasso da duquesa, reduzida a "nada mais, exceto
eu mesma", soa menos como alegoria do que como exemplo: o
exemplo do que pode ser uma
música ou uma vida sem afeto.
Outra versão, sem palavras, dessa devastação articula os quatro
movimentos da peça sinfônica
"Asyla" (plural, em latim, de "asilo"), interpretada pelo maestro
Simon Rattle em seu concerto de
despedida da Sinfônica de Birmingham, no ano passado. Em
vez de anos 30, anos 90; em vez de
canções, música tecno: o terceiro
movimento, "Ecstasio", faz da cena clubber londrina uma paisagem explosiva interna, que mal se
resolve num quase coral em
(aproximadamente) mi bemol
maior. E a nova ópera, com texto
do poeta James Fenton, deve
transportar essas ansiedades para
um cenário de rituais e cultos.
Na década de 70, foi Oliver
Knussen quem despontou como
o novo nome da música inglesa.
Os anos 80 viram o surgimento de
George Benjamin; um e outro são
hoje talentos estabelecidos, mas
não fizeram vingar a promessa de
originalidade, que continua nas
mãos de compositores mais velhos, como Harrison Birtwistle e
Peter Maxwell Davies.
Só o passar dos anos vai mostrar
se Adès é o que parece, ou só parece que é. Mas para quem acompanha sua música fica difícil pensar
noutro compositor mais representativo do que pode ser esse
tempo e esse lugar. Tempo e lugar
que, agora, nalguma medida, são
dele, reinventados com o acento
pessoal de um grande novo compositor da Inglaterra.
Avaliação:
Disco: Powder Her Face
Regente: Thomas Adès
Com: Jill Gomez, Valdine Anderson, Niall
Morris, Roger Bryson
Lançamento: EMI
Quanto: R$ 68, em média (2 CDs)
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