São Paulo, Terça-feira, 24 de Agosto de 1999
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MÚSICA
"Powder Her Face", do compositor inglês de 27 anos, sai em CD duplo e agita o mundo erudito
Thomas Adès põe sexo oral em ópera

ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas

Ele é professor de composição na Royal Academy of Music, em Londres, desde 1997. No ano passado, assumiu a direção do renomado Festival de Aldeburgh e um posto de regente do Birmingham Contemporary Music Group.
Recentemente apareceu como solista de piano em seu próprio "Concerto Conciso", no Carnegie Hall. Uma nova ópera estréia em 2001, no Covent Garden; antes disso, outra peça, encomendada pela Filarmônica de Nova York.
Aos 27 anos de idade, Thomas Adès é o nome mais comentado de uma nova geração de compositores, e sua música deve conquistar um público amplo agora, com o lançamento em disco de sua ópera "Powder Her Face". "É a música do futuro", na opinião abalizada do crítico Paul Griffiths.
O futuro dura muito tempo e às vezes demora para chegar. Mas "Powder Her Face" já é o bastante para definir uma música do presente: complexa, mas direta, variada em propósito e estilo, usando de tudo um pouco e fazendo do pouco tudo. Sofisticação, aqui, não é entrave para o arrojo: Adès tem a confiança improvável de quem chega tarde na história, mas ainda tem a coragem quase inocente de reinventar o mundo.
Ele está para a música como seu conterrâneo Alan Hollinghurst para a literatura e Peter Greenaway para o cinema. Coube a ele dar uma voz inglesa à imaginação afetiva e sexual e a novas responsabilidades em formação, nesse momento ainda mal-definido como fim de século. A definição não é fácil mesmo e não se restringe a identificar linhagens.
No caso dessa ópera, as referências musicais e dramáticas a predecessores como Alban Berg, Kurt Weil e Benjamin Britten são explícitas e reconhecidas por todos os comentadores. O próprio compositor nomeia os húngaros Ligeti e Kurtág como outros modelos. Uma homenagem ao Stravinski de "The Rake's Progress" pode ser menos óbvia, mas também não ajuda a situar "Powder Her Face" para além da genealogia de influências.
De tudo um pouco, e no pouco tudo: sem ouvir a música, a frase pode soar como apologia do ecletismo. Tanto mais quando se sabe que Adès usa o tango de Piazzola no prelúdio e no epílogo; e uma canção à moda dos anos 30 como momento de exaltação nostálgica da heroína.
Mas em nenhum desses casos pode-se falar em pastiche, ou colagem. Uma música entra em outra com força de evocação, mas transformada pela pressão de outro ambiente e outras ambições. "Não se pode compor de leve, como também ninguém fica grávida de leve", declarou Adès numa reportagem da revista "New Yorker" no ano passado. Que a gravidade do compositor não obstrua sua leveza de meios, nem a ironia, e o humor, e a fluência, é uma medida de seu temperamento, musicalmente generoso.
"Powder Her Face" significa literalmente "Passar Pó no Rosto Dela", mas com acentos de aristocracia antiga: "pó-de-arroz". A ópera de câmara (quatro solistas, clarinetes, sax, trompa, trumpete e trombone; harpa, acordeão e piano; percussão e quinteto de cordas) estreou em 1995.
Adès, na época com 24 anos, já firmara seu nome com obras como "Living Toys", um poema sinfônico, com personagens como um toureiro espanhol e o computador HAL de "2001"; um quarteto de cordas, "Arcadiana"; e "...but all shall be well", interpretada pela Halle Orchestra sob a regência de Kent Nagano.
O libreto da ópera, escrito pelo crítico inglês Philip Hensher, se concentra na figura real de Margareth Whigham,conhecida como Mrs. Sweeny ou Duquesa de Argyll. Linda, rica e famosa, Mrs Sweeny faz rima com Mussolini na letra de "You're the Top", de Cole Porter. Não haveria maior renome possível, não fosse um escândalo: seu divórcio do duque, em 63, ficou célebre, quando fotos dela praticando sexo oral foram exibidas no tribunal. (Graças a uma imperfeição, ficou provado que o homem que aparece nas fotos, sem rosto, não era um alto funcionário do governo.)
A duquesa perdeu a causa e foi censurada pelo juiz por seu "apetite sexual degradado"; mas não perdeu a riqueza nem a fama. Ou pelo menos não até os últimos anos, quando acabou expulsa do hotel onde morava. Veio a morrer sozinha, num asilo, em 1993.
Tendo como ponto de partida e término a última hora da duquesa no hotel, em 1990, "Powder Her Face" salta de 1934, passando pelas décadas de 50 e 70, em árias, duetos e trios que vão compondo a história de frivolidade, arrogância, isolamento, falsidade, ganância e "sexualidade degradada" dessa "nova Helena" de nenhuma Tróia. Destaca-se a primeira cena de sexo oral na história da ópera, um tour de force de sopros, glissandos e gemidos.
Mas aqui, como na partitura toda, o mistério de Adès é fazer soar, naquilo que soa, uma outra música, que talvez só possa mesmo ser ouvida por contraste, sem som, para além de qualquer capacidade de representação. "Powder Her Face" é a grande ópera de amor do nosso tempo: ainda mais raro na música do que fora, o amor é o tema retumbante dessa história da falta de amor.
Toda a impureza de estilo, nessa música que não é nem tonal, nem atonal, nem de vanguarda, nem conservadora, nem "inglesa", nem não-inglesa, cumpre um propósito análogo. No centro imaginário, Adès concentra ecos de uma pureza tanto afetiva quanto musical (e literária: as ambivalências do libreto, entre o verso popular e o teatro mais refinado, não poderiam ser mais adequadas). Ela é forte o bastante para se travestir de melodrama, sem perder a leveza ou a gravidade do drama, nem da melodia.
Desde o início, então, com a duquesa entoando o elogio do seu perfume -um aroma "que dura para sempre, como nenhuma outra coisa"- até o final, quando a última garrafa vazia de "Joy" é espatifada contra a parede, o que se anuncia e se esconde é "o sentimento divino" que música alguma é capaz de cantar, mas só a música é capaz de não cantar dessa maneira. O fracasso da duquesa, reduzida a "nada mais, exceto eu mesma", soa menos como alegoria do que como exemplo: o exemplo do que pode ser uma música ou uma vida sem afeto.
Outra versão, sem palavras, dessa devastação articula os quatro movimentos da peça sinfônica "Asyla" (plural, em latim, de "asilo"), interpretada pelo maestro Simon Rattle em seu concerto de despedida da Sinfônica de Birmingham, no ano passado. Em vez de anos 30, anos 90; em vez de canções, música tecno: o terceiro movimento, "Ecstasio", faz da cena clubber londrina uma paisagem explosiva interna, que mal se resolve num quase coral em (aproximadamente) mi bemol maior. E a nova ópera, com texto do poeta James Fenton, deve transportar essas ansiedades para um cenário de rituais e cultos.
Na década de 70, foi Oliver Knussen quem despontou como o novo nome da música inglesa. Os anos 80 viram o surgimento de George Benjamin; um e outro são hoje talentos estabelecidos, mas não fizeram vingar a promessa de originalidade, que continua nas mãos de compositores mais velhos, como Harrison Birtwistle e Peter Maxwell Davies.
Só o passar dos anos vai mostrar se Adès é o que parece, ou só parece que é. Mas para quem acompanha sua música fica difícil pensar noutro compositor mais representativo do que pode ser esse tempo e esse lugar. Tempo e lugar que, agora, nalguma medida, são dele, reinventados com o acento pessoal de um grande novo compositor da Inglaterra.


Avaliação:     

Disco: Powder Her Face Regente: Thomas Adès Com: Jill Gomez, Valdine Anderson, Niall Morris, Roger Bryson
Lançamento: EMI Quanto: R$ 68, em média (2 CDs)


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