São Paulo, quarta, 24 de setembro de 1997.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Garbo e Bogart: mitos unidos pela distância

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

A expressão é meio ruim, mas acaba de ser lançado um "pacote Greta Garbo" para colecionadores de fitas de vídeo. Quatro fitas ("Anna Christie", "Grande Hotel", "A Dama das Camélias" e "Ninotchka") podem ser adquiridas, a R$ 18 cada.
Há também uma nova versão de "Anna Karenina" em cartaz. Dessa vez o diretor é Bernard Rose (o mesmo de "Minha Amada Imortal", a vida de Beethoven com Gary Oldman) e, no papel de Anna Karenina, temos Sophie Marceau. Mas a versão antiga do romance de Tolstói, com a mesma Greta Garbo, está disponível em vídeo.
Tudo convida, assim, a falar um pouco de Greta Garbo. Mas, antes de falar dela, introduzo outro ator, outro mito: Humphrey Bogart. É que também está disponível em vídeo um filme que, para mim, é a quintessência do estilo Bogart: chama-se "Confissão" ("Dead Reckoning"), é dirigido por John Cromwell e tem a loira Lizabeth Scott como mulher fatal.
Greta Garbo e Humphrey Bogart já eram mitos na época em que estrelavam filmes, claro. Tornaram-se, hoje em dia, uma espécie de "metamitos", de mitos em segundo grau, de fenômenos que não mais interessam às massas, e sim aos intelectuais, aos cinéfilos, aos nostálgicos.
Entre a "Anna Karenina" atual, de Bernard Rose, e a "Anna Karenina" de 1935, com Greta Garbo, não há diferenças significativas. O roteiro pode ter sido modificado aqui e ali, mas o mesmo drama, quase a mesma música e, principalmente, a mesma intenção -comover o público- estão presentes.
Há, sem dúvida, uma diferença entre Greta Garbo e Sophie Marceau. Sophie Marceau é mais jovem e menos bonita; atualiza o problema da mulher adúltera com uma inocência mais redondinha, com sobrancelhas curvas de criança, ao passo que Greta Garbo, no papel de Anna, é mais angulosa -o rosto anguloso serve para "dramatizar" a personagem- e mais "senhora".
É estranho como, nos filmes antigos, mesmo os jovens parecem mais velhos do que os jovens ou os quarentões de hoje. O galã Vronsky, no filme de 1935, é um Fredric March que bem poderia estar na faixa dos 50, com direito a barriga e bigodinho. Greta Garbo tem que ser tão "dramática" que envelhece também.
Hoje em dia, Sharon Stone e Julia Roberts podem muito bem estar com 40 anos, seus papéis e seus rostos aparentam 25. Envelhece-se menos. Nesse filme antigo, Greta Garbo e Fredric March já são meio velhos a nossos olhos apressados.
Claro que, mesmo assim, Greta Garbo continua parecendo bonita. Mas imagino que o público de 1935 a achava mais bonita do que nós a achamos hoje. Isso confere a "Anna Karenina" uma espécie de estranheza. Explico.
Nesse filme de Clarence Brown, é comum vermos Greta Garbo cercada de silêncio. Respostas que demoram para ser dadas, instantes de embaraço, risadas meio cavas, olhares sem significação, tudo passa como névoa diante do rosto de Greta Garbo. Suas respostas, suas declarações de amor, seus momentos de desespero são ocos, formais, distantes. Ela faz a pose de Anna Karenina, não encarna Anna Karenina.
Como bom mito de Hollywood, Greta Garbo cria uma distância. No "Anna Karenina" de Bernard Rose, Sophie Marceau é apenas candidata a camareira de Greta Garbo.
Mas a distância visual produzida por Greta Garbo, que exige vácuos de roteiro e fraquezas de diálogo, é uma espécie de distância ideológica quando pensamos em Humphrey Bogart.
Assisti a "Confissão" antes de ter visto "Casablanca" ou "O Falcão Maltês". Esses dois filmes clássicos me pareceram imitações imperfeitas de "Confissão", pois, até onde eu saiba, Bogart nunca foi tão Bogart como neste filme.
O pressuposto de Bogart é que toda mulher mente e, mesmo assim, se apaixona por você. O filme de John Cromwell é uma delícia: há um monte de reviravoltas amorosas entre Bogart e Lizabeth Scott, numa história complicada, e, se Greta Garbo nunca sabe o que responder numa situação ambígua, mostrando apenas o perfil de estátua, Bogart, ele sim, responde tudo da maneira mais rápida e desenganada.
É como se o desengano de Bogart fosse a desromantização dos silêncios de Garbo; enquanto ela se engrandece na derrota, o amesquinhamento de Bogart é sua estratégia para engrandecer-se. Bogart não acredita em coisa nenhuma: logo, distancia-se das mulheres. Garbo é capaz de acreditar em tudo: logo, foge da vida e de si mesma. O suicídio, última arma feminina, contrasta com a abnegação cética -suicídio das convicções e dos amores, mas não do corpo- que orienta o modo de vida bogartiano.
Opõe-se o cortante de Bogart ao dilaceramento de Greta Garbo; Bogart escolhe o exílio voluntário, heróico, enquanto Garbo é vítima de um exílio que os outros decretaram.
Mas o que há de comum nos dois é uma palavra: distância. Se Greta Garbo é um mito, é porque estão em jogo duas razões. Há a razão real, nos filmes daquele tempo: ela estava envolta em silêncio e close-ups inexpressivos, "misteriosos", mitificantes. Há a razão histórica: 60 anos nos distanciam dela quando pegamos a fita de vídeo na locadora.
E, se Bogart é um mito, há outras duas razões de distância que podemos identificar.
A primeira é que ele próprio, não no rosto, mas nos diálogos, distancia-se das armadilhas femininas que o roteiro lhe traça; a segunda é que, cético e feio, o passar do tempo lhe confere beleza, elegância e ingenuidade.
Em conclusão, tudo melhora 50 anos depois. Filmes puramente comerciais ganham estatuto, se não de obras de arte, pelo menos de "clássicos" ou de "cult movies", dada a distância (e a metadistância) que se estabelece.
Há uma razão materialista e bastante clara para isso. Num artigo de 1939, o crítico de arte Clement Greenberg contrapunha a arte de vanguarda ao kitsch da cultura de massa.
Via no kitsch uma tentativa de produzir efeitos estéticos pré-fabricados, um açodamento comercial em dar emoções prontas ao público ignaro. Enquanto isso, a arte de vanguarda era mais exigente, propunha ao espectador enigmas e retiradas estratégicas.
Acontece que o kitsch de 1939 perdeu seu lado apelativo para o público de 1997; o que os grandes artistas tentaram, o tempo, por si só, se encarregou de realizar: impôs um distanciamento, venceu o apelo aproximativo do kitsch, tornou o próprio kitsch obra-de-arte e objeto de culto.
Greta Garbo e Bogart são mestres do distanciamento numa cultura de massas apelativa -que buscava "aproximar-se" do público, agarrando-o emocionalmente pelo colarinho-, feita 60 ou 50 anos atrás.
Tornam-se arte, hoje em dia, e vivem mais do que as vanguardas que procuravam a estranheza pela estranheza. Estranharam-se sozinhos, pela simples passagem do tempo. E também pelo que faziam conscientemente: o distanciamento kitsch se tornava distanciamento ideológico, na misoginia de Bogart e no tragicismo solitário de Garbo.
Vemos esses filmes com um misto de sorriso e de admiração. O kitsch é recuperável, a vanguarda soa às vezes como um filme de época. O ponto de vista crítico de que dispomos, em 1997, não é mais refinado do que o de Greenberg em 1939 -é apenas mais velho, mais sabido. E certamente será ingênuo aos olhos das gerações futuras.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.