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Garbo e Bogart: mitos unidos pela distância
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
A expressão é meio ruim, mas
acaba de ser lançado um "pacote Greta Garbo" para colecionadores de fitas de vídeo.
Quatro fitas ("Anna Christie",
"Grande Hotel", "A Dama das
Camélias" e "Ninotchka") podem ser adquiridas, a R$ 18
cada.
Há também uma nova versão de "Anna Karenina" em
cartaz. Dessa vez o diretor é
Bernard Rose (o mesmo de
"Minha Amada Imortal", a vida de Beethoven com Gary
Oldman) e, no papel de Anna
Karenina, temos Sophie Marceau. Mas a versão antiga do
romance de Tolstói, com a
mesma Greta Garbo, está disponível em vídeo.
Tudo convida, assim, a falar
um pouco de Greta Garbo.
Mas, antes de falar dela, introduzo outro ator, outro mito:
Humphrey Bogart. É que também está disponível em vídeo
um filme que, para mim, é a
quintessência do estilo Bogart:
chama-se "Confissão" ("Dead
Reckoning"), é dirigido por
John Cromwell e tem a loira
Lizabeth Scott como mulher
fatal.
Greta Garbo e Humphrey Bogart já eram mitos na época
em que estrelavam filmes, claro. Tornaram-se, hoje em dia,
uma espécie de "metamitos",
de mitos em segundo grau, de
fenômenos que não mais interessam às massas, e sim aos intelectuais, aos cinéfilos, aos
nostálgicos.
Entre a "Anna Karenina"
atual, de Bernard Rose, e a
"Anna Karenina" de 1935,
com Greta Garbo, não há diferenças significativas. O roteiro
pode ter sido modificado aqui
e ali, mas o mesmo drama,
quase a mesma música e, principalmente, a mesma intenção
-comover o público- estão
presentes.
Há, sem dúvida, uma diferença entre Greta Garbo e Sophie Marceau. Sophie Marceau
é mais jovem e menos bonita;
atualiza o problema da mulher
adúltera com uma inocência
mais redondinha, com sobrancelhas curvas de criança, ao
passo que Greta Garbo, no papel de Anna, é mais angulosa
-o rosto anguloso serve para
"dramatizar" a personagem-
e mais "senhora".
É estranho como, nos filmes
antigos, mesmo os jovens parecem mais velhos do que os jovens ou os quarentões de hoje.
O galã Vronsky, no filme de
1935, é um Fredric March que
bem poderia estar na faixa dos
50, com direito a barriga e bigodinho. Greta Garbo tem que
ser tão "dramática" que envelhece também.
Hoje em dia, Sharon Stone e
Julia Roberts podem muito
bem estar com 40 anos, seus
papéis e seus rostos aparentam
25. Envelhece-se menos. Nesse
filme antigo, Greta Garbo e
Fredric March já são meio velhos a nossos olhos apressados.
Claro que, mesmo assim,
Greta Garbo continua parecendo bonita. Mas imagino
que o público de 1935 a achava
mais bonita do que nós a achamos hoje. Isso confere a "Anna
Karenina" uma espécie de estranheza. Explico.
Nesse filme de Clarence
Brown, é comum vermos Greta
Garbo cercada de silêncio. Respostas que demoram para ser
dadas, instantes de embaraço,
risadas meio cavas, olhares
sem significação, tudo passa
como névoa diante do rosto de
Greta Garbo. Suas respostas,
suas declarações de amor, seus
momentos de desespero são
ocos, formais, distantes. Ela
faz a pose de Anna Karenina,
não encarna Anna Karenina.
Como bom mito de Hollywood, Greta Garbo cria uma
distância. No "Anna Karenina" de Bernard Rose, Sophie
Marceau é apenas candidata a
camareira de Greta Garbo.
Mas a distância visual produzida por Greta Garbo, que
exige vácuos de roteiro e fraquezas de diálogo, é uma espécie de distância ideológica
quando pensamos em Humphrey Bogart.
Assisti a "Confissão" antes
de ter visto "Casablanca" ou
"O Falcão Maltês". Esses dois
filmes clássicos me pareceram
imitações imperfeitas de "Confissão", pois, até onde eu saiba,
Bogart nunca foi tão Bogart
como neste filme.
O pressuposto de Bogart é
que toda mulher mente e, mesmo assim, se apaixona por você. O filme de John Cromwell é
uma delícia: há um monte de
reviravoltas amorosas entre
Bogart e Lizabeth Scott, numa
história complicada, e, se Greta Garbo nunca sabe o que responder numa situação ambígua, mostrando apenas o perfil
de estátua, Bogart, ele sim, responde tudo da maneira mais
rápida e desenganada.
É como se o desengano de
Bogart fosse a desromantização dos silêncios de Garbo; enquanto ela se engrandece na
derrota, o amesquinhamento
de Bogart é sua estratégia para
engrandecer-se. Bogart não
acredita em coisa nenhuma:
logo, distancia-se das mulheres. Garbo é capaz de acreditar
em tudo: logo, foge da vida e de
si mesma. O suicídio, última
arma feminina, contrasta com
a abnegação cética -suicídio
das convicções e dos amores,
mas não do corpo- que orienta o modo de vida bogartiano.
Opõe-se o cortante de Bogart
ao dilaceramento de Greta
Garbo; Bogart escolhe o exílio
voluntário, heróico, enquanto
Garbo é vítima de um exílio
que os outros decretaram.
Mas o que há de comum nos
dois é uma palavra: distância.
Se Greta Garbo é um mito, é
porque estão em jogo duas razões. Há a razão real, nos filmes daquele tempo: ela estava
envolta em silêncio e close-ups
inexpressivos, "misteriosos",
mitificantes. Há a razão histórica: 60 anos nos distanciam
dela quando pegamos a fita de
vídeo na locadora.
E, se Bogart é um mito, há
outras duas razões de distância que podemos identificar.
A primeira é que ele próprio,
não no rosto, mas nos diálogos,
distancia-se das armadilhas
femininas que o roteiro lhe
traça; a segunda é que, cético e
feio, o passar do tempo lhe
confere beleza, elegância e ingenuidade.
Em conclusão, tudo melhora
50 anos depois. Filmes puramente comerciais ganham estatuto, se não de obras de arte,
pelo menos de "clássicos" ou
de "cult movies", dada a distância (e a metadistância) que
se estabelece.
Há uma razão materialista e
bastante clara para isso. Num
artigo de 1939, o crítico de arte
Clement Greenberg contrapunha a arte de vanguarda ao
kitsch da cultura de massa.
Via no kitsch uma tentativa
de produzir efeitos estéticos
pré-fabricados, um açodamento comercial em dar emoções
prontas ao público ignaro. Enquanto isso, a arte de vanguarda era mais exigente, propunha ao espectador enigmas e
retiradas estratégicas.
Acontece que o kitsch de 1939
perdeu seu lado apelativo para
o público de 1997; o que os
grandes artistas tentaram, o
tempo, por si só, se encarregou
de realizar: impôs um distanciamento, venceu o apelo aproximativo do kitsch, tornou o
próprio kitsch obra-de-arte e
objeto de culto.
Greta Garbo e Bogart são
mestres do distanciamento numa cultura de massas apelativa -que buscava "aproximar-se" do público, agarrando-o emocionalmente pelo colarinho-, feita 60 ou 50 anos
atrás.
Tornam-se arte, hoje em dia,
e vivem mais do que as vanguardas que procuravam a estranheza pela estranheza. Estranharam-se sozinhos, pela
simples passagem do tempo. E
também pelo que faziam conscientemente: o distanciamento
kitsch se tornava distanciamento ideológico, na misoginia de Bogart e no tragicismo
solitário de Garbo.
Vemos esses filmes com um
misto de sorriso e de admiração. O kitsch é recuperável, a
vanguarda soa às vezes como
um filme de época. O ponto de
vista crítico de que dispomos,
em 1997, não é mais refinado
do que o de Greenberg em 1939
-é apenas mais velho, mais
sabido. E certamente será ingênuo aos olhos das gerações futuras.
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