São Paulo, Sexta-feira, 24 de Setembro de 1999
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LITERATURA

O ser volta a ser leve com reedição de Kundera


EDUARDO RASCOV
especial para a Folha

O romance "A Insustentável Leveza do Ser" é daqueles que deve ser lido a dois, a voz sussurrada no aconchego do quarto pelo casal capaz de compaixão ("soucit", em tcheco, ou, literalmente, co-sentimento), que, na hierarquia do autor, "é o sentimento supremo". Não apenas no sentido cristão de "passio" ("sofrimento", em latim), mas "sentir com esse alguém qualquer outra emoção: alegria, angústia, felicidade, dor". E conclui: "Essa compaixão designa a mais alta capacidade de imaginação afetiva, a arte da telepatia das emoções".
Milan Kundera é, pois, um desses autores que os amantes devem ter na cabeceira, junto, talvez, de um Roland Barthes (de "Fragmentos do Discurso Amoroso") e de um Platão (de "O Banquete"), entre outros. São escritores que se apaixonaram, por certo, mas, ao escreverem sobre a paixão, não se deixaram contaminar pela vulgaridade e pela pieguice, apanágio dos nossos dias. Mais que isso: instigam, fazem pensar, levam-nos a ação. Nos tornam melhores amantes.
Por isso é uma boa o relançamento de "A Insustentável" pela Companhia das Letras. Publicado originalmente pela Nova Fronteira, em 1984, o livro foi recebido -primeiramente por homens e mulheres maduros e sofisticados- como rara surpresa que exalava um perfume ao mesmo tempo sutil e denso.
O fato de o Muro de Berlim ainda não ter caído e do autor, Milan Kundera, ser um dissidente que vivia exilado em Paris só aumentava seu glamour.
Ambientado na bela Praga, capital da então Tchecoslováquia, o romance ampliou seu círculo de leitores. Tornou-se um best seller dos anos 80.
Hoje a questão é saber se o livro resiste a uma nova leitura, afinal o mundo mudou tanto, a própria Tchecoslováquia não existe mais, nem o comunismo europeu, que servia de pano de fundo do drama. O planeta diminuiu.
Mas não o mundo interior. Este está em plena expansão. E em perigo. Ou será que o advento da Aids, dos remédios da alma (como o Prozac e o Zoloft), do Viagra, bem como os fundamentalismos religiosos não vieram complicar o universo do espírito e dos sentimentos? Pois de alguma forma são desses temas que "A Insustentável Leveza do Ser" trata. Se atualmente a psicanálise está em baixa, Kundera manipula com desenvoltura seus conceitos. Se a arte e a cultura hoje são menosprezadas como coisas de especialistas, temos o exemplo desse autor extremamente civilizado, mas que não tropeça nem no academicismo nem na chatice.
Aliás, "sedução" é uma boa palavra nesse caso. Ao escrever "A Insustentável Leveza do Ser", Milan Kundera queria, antes de mais nada, seduzir o leitor contemporâneo mediamente culto. Por isso estão lá, desde o início, algumas considerações deliciosas em torno da especulação nietzschiana do "eterno retorno do mesmo". Raciocinando por negação, o escritor argumenta que, se as coisas acontecem uma vez só na vida, não há ensaio nem preparo prévio. Como saber então o que é correto? Como Tomas poderá decidir entre a liberdade de um Don Juan ou o compromisso com a intensa mas provinciana Tereza? A sofisticada e independente Sabina deverá aceitar o singelo Franz ou mais uma vez trair o seu caminho?
Esses personagens principais vão sendo apresentados, ao mesmo tempo que é traçado um painel de uma sociedade (a comunista) para lá de madura. A ação pouco importa e o tempo não é linear. Aqui e ali um capítulo de pura reflexão sobre dualidades como a posse e o ciúme, a alma e o corpo, o acaso e o destino, o kitsch e a verdade.
Algumas sacadas e algum verniz filosófico depois fica a sensação de que o romance admite (e pede) outras leituras. Ou seja, é um clássico.
O segredo da obra clássica, segundo o mestre Jorge Luis Borges, é justamente essa capacidade de variar a cada leitura, "de modo levíssimo, para no perder su virtud" ("Sobre los Clasicos"), o que permite às novas gerações que a compreenda e que a ame. Como por certo será o caso de "A Insustentável Leveza do Ser".



Livro: A Insustentável Leveza do Ser
Autor: Milan Kundera
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 27 (350 págs.)


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