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LITERATURA
O ser volta a ser leve com reedição de Kundera
EDUARDO RASCOV
especial para a Folha
O romance "A Insustentável Leveza do Ser" é daqueles que deve
ser lido a dois, a voz sussurrada
no aconchego do quarto pelo casal capaz de compaixão ("soucit",
em tcheco, ou, literalmente, co-sentimento), que, na hierarquia
do autor, "é o sentimento supremo". Não apenas no sentido cristão de "passio" ("sofrimento", em
latim), mas "sentir com esse alguém qualquer outra emoção:
alegria, angústia, felicidade, dor".
E conclui: "Essa compaixão designa a mais alta capacidade de imaginação afetiva, a arte da telepatia
das emoções".
Milan Kundera é, pois, um desses autores que os amantes devem
ter na cabeceira, junto, talvez, de
um Roland Barthes (de "Fragmentos do Discurso Amoroso") e de um
Platão (de "O
Banquete"),
entre outros.
São escritores
que se apaixonaram, por
certo, mas, ao
escreverem sobre a paixão,
não se deixaram contaminar pela vulgaridade e pela
pieguice, apanágio dos nossos dias. Mais
que isso: instigam, fazem
pensar, levam-nos a ação. Nos
tornam melhores amantes.
Por isso é
uma boa o relançamento de
"A Insustentável" pela Companhia das Letras. Publicado
originalmente
pela Nova
Fronteira, em
1984, o livro foi
recebido
-primeiramente por homens e mulheres maduros e
sofisticados-
como rara surpresa que exalava um perfume ao mesmo
tempo sutil e
denso.
O fato de o
Muro de Berlim ainda não
ter caído e do
autor, Milan
Kundera, ser
um dissidente
que vivia exilado em Paris só
aumentava seu glamour.
Ambientado na bela Praga, capital da então Tchecoslováquia, o
romance ampliou seu círculo de
leitores. Tornou-se um best seller
dos anos 80.
Hoje a questão é saber se o livro
resiste a uma nova leitura, afinal o
mundo mudou tanto, a própria
Tchecoslováquia não existe mais,
nem o comunismo europeu, que
servia de pano de fundo do drama. O planeta diminuiu.
Mas não o mundo interior. Este
está em plena expansão. E em perigo. Ou será que o advento da
Aids, dos remédios da alma (como o Prozac e o Zoloft), do Viagra, bem como os fundamentalismos religiosos não vieram complicar o universo do espírito e dos
sentimentos? Pois de alguma forma são desses temas que "A Insustentável Leveza do Ser" trata.
Se atualmente a psicanálise está
em baixa, Kundera manipula com
desenvoltura seus conceitos. Se a
arte e a cultura hoje são menosprezadas como coisas de especialistas, temos o exemplo desse autor extremamente civilizado, mas
que não tropeça nem no academicismo nem na chatice.
Aliás, "sedução" é uma boa palavra nesse caso. Ao escrever "A
Insustentável Leveza do Ser", Milan Kundera queria, antes de mais
nada, seduzir o leitor contemporâneo mediamente culto. Por isso
estão lá, desde o início, algumas
considerações deliciosas em torno da especulação nietzschiana
do "eterno retorno do mesmo".
Raciocinando
por negação, o
escritor argumenta que, se
as coisas acontecem uma vez
só na vida, não
há ensaio nem
preparo prévio. Como saber então o que
é correto? Como Tomas poderá decidir
entre a liberdade de um Don
Juan ou o compromisso com
a intensa mas
provinciana
Tereza? A sofisticada e independente
Sabina deverá
aceitar o singelo Franz ou
mais uma vez
trair o seu caminho?
Esses personagens principais vão sendo
apresentados,
ao mesmo
tempo que é
traçado um
painel de uma
sociedade (a
comunista) para lá de madura. A ação pouco importa e o
tempo não é linear. Aqui e ali
um capítulo de
pura reflexão
sobre dualidades como a
posse e o ciúme, a alma e o
corpo, o acaso
e o destino, o
kitsch e a verdade.
Algumas sacadas e algum
verniz filosófico depois fica a sensação de que o
romance admite (e pede) outras
leituras. Ou seja, é um clássico.
O segredo da obra clássica, segundo o mestre Jorge Luis Borges,
é justamente essa capacidade de
variar a cada leitura, "de modo levíssimo, para no perder su virtud"
("Sobre los Clasicos"), o que permite às novas gerações que a compreenda e que a ame. Como por
certo será o caso de "A Insustentável Leveza do Ser".
Livro: A Insustentável Leveza do Ser
Autor: Milan Kundera
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 27 (350 págs.)
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