São Paulo, Sexta-feira, 24 de Setembro de 1999
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1º livro é partitura cansativa

especial para a Folha

O que em "A Insustentável Leveza do Ser" é virtude, em "A Brincadeira" -que a Companhia das Letras também relança- é defeito. Como em uma partitura musical, Kundera volta aos mesmos motivos ao longo do romance, cada vez sob o ponto de vista de um personagem. Se esse expediente proporciona leveza ao primeiro romance, no segundo, cansa. Aqui a narração se arrasta em descrições anacrônicas, com um certo tom de realismo-socialista, mesmo que em primeira pessoa.
Explica-se. Terminado em 1965, "A Brincadeira" é o romance de estréia do escritor tcheco. Aos 36 anos, Kundera ainda aprimorava sua técnica. Antes, havia perpetrado alguma poesia sob influência dos ideais comunistas, hoje renegada pelo autor. Ainda respirava o ar carregado centro-europeu pré-68. "A Insustentável" foi escrita em Paris nos anos 80.
Ludvik é um jovem esquerdista de uma pequena cidade da Morávia, uma das províncias da Tchecoslováquia. O ano é 1948, data em que o partido comunista toma o poder no país. Entusiasta membro da Juventude Comunista, Ludvik namora outra militante, Marketa. Um simples cartão-postal enviado por Ludvik a Marketa, que estava estagiando num castelo na Boêmia, muda radicalmente o seu promissor futuro.
Eis as palavras que constituem "a brincadeira": "O otimismo é o ópio do gênero humano! O espírito sadio fede a imbecilidade. Viva Trotski!". É claro que a mensagem é interceptada pelos bons comunistas. Ludvik é julgado e expulso da faculdade e do partido. É obrigado a alistar-se no exército. Lá, é designado para fazer parte do grupo que não tem o direito de pegar em armas. São os "negros", verdadeiros párias sociais, que trabalham numa mina.
Temos então um comunista de coração obrigado a viver com a "escória" oposicionista, filhos de ex-burgueses ou de intelectuais decadentes. Ludvik apaixona-se por Lucie, uma tímida interiorana que guarda um terrível segredo. Ludvik nunca a compreenderá e o livro é também a história do desencontro desse casal.
E assim vai o herói, de frustração em frustração. Nem se vingar daqueles que o arruinaram ele consegue. É interessante perceber que, mesmo nesse jovem Kundera, a fórmula que depois seria tão bem-sucedida já estava esboçada. Aqui estão os capítulos em forma de ensaios, as longas digressões, o erotismo seco, direto, a dualidade amor/sexo, o olhar irônico e argutíssimo sobre o socialismo.
Em uma de suas cartas, Franz Kafka diz que há um ponto a partir do qual não há retorno. Esse é o que deve ser buscado. "A Brincadeira" é o ponto sem volta de outro escritor tcheco. Já é Kundera, sim, mas um Kundera ainda eloquente e excessivo. (ER)

Livro: A Brincadeira
Autor: Milan Kundera
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (358 págs.)


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