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CARLOS HEITOR CONY
Memória antiga de uma briga ideológica
Entre as coisas espantosas
que presenciei na vida em geral uma das mais curiosas foi a
minha estréia no jornalismo, cobrindo a Câmara de Vereadores
do então Distrito Federal, aqui no
Rio, logo após a queda do Estado
Novo. Bem verdade que se elegeu
uma representação de peso, que
outra não houve igual, presidida
por João Alberto, que havia sido
interventor em São Paulo durante o movimento revolucionário de
30 e foi ministro várias vezes.
A UDN, principal partido de
oposição a Vargas, elegera nove
ou dez vereadores, com gente de
nível nacional, como Carlos Lacerda, Ary Barroso, o poeta Jorge
de Lima, autor de "Nêga Fulô" e
de "Invenção de Orfeu", Adauto
Lúcio Cardoso, mais tarde ministro, presidente da Câmara dos
Deputados e membro do Supremo. O Partido Comunista Brasileiro elegeria 18, com nomes históricos em sua bancada, como Agildo Barata, Octavio Brandão,
Aparício Torelli (Barão de Itararé). Pela Esquerda Democrática,
que se transformaria no Partido
Socialista, Osório Borba, jornalista famoso na época.
O primeiro assunto discutido foi
a mudança do nome da avenida
Presidente Vargas. Era necessário
varrer da memória nacional o
nome do ex-ditador. Um líder estudantil, filiado à UDN, meu
amigo pessoal até hoje, apesar de
nossas divergências de opinião,
sugeriu em campanha de rua que
se desse à maior avenida da então
capital da República o nome de
Gení Gomes, mãe do brigadeiro
Eduardo Gomes, que havia sido
derrotado nas eleições de 1946 pelo general Eurico Dutra. O brigadeiro simbolizava não apenas o
partido da "eterna vigilância"
mas a oposição ao trabalhismo e
ao getulismo, que eram mais ou
menos a mesma coisa.
A UDN e o PCB, com o pequeno
reforço do Partido Socialista, faziam a maioria do plenário e a
bancada udenista propôs a mudança do nome de Vargas para o
nome da mãe do brigadeiro, com
a diferença de que a indicação
não falava em "mãe", mas em
"progenitora" do brigadeiro.
Num primeiro momento, a
bancada do PCB quase ia tomando o bonde errado, mas, que diabo, progenitora por progenitora,
por que não a progenitora de Luís
Carlos Prestes, líder do partido,
que havia sido eleito senador com
votação esmagadora e era muito
mais histórico do que o brigadeiro?
Comemorava-se, naquele ano,
o centenário de nascimento de
Castro Alves, que os comunistas
adotaram como um ancestral
ideológico da causa libertária.
Numa reunião em que saíram desaforos de parte a parte, o PCB
mudou de idéia, indicando o nome do poeta dos escravos para batizar a avenida monumental.
Desconfiada, a bancada udenista deixou o jovem estudante
fazendo sua campanha nas ruas
da cidade. Mais tarde seria ele
próprio eleito vereador em várias
legislaturas -e dos melhores.
Tornou-se famoso porque, na estréia de uma peça do Nelson Rodrigues, no Teatro Municipal,
quis dar tiros nos atores que estavam no palco.
Eu estava nos 20 anos e nada
conhecia da vida, como até hoje
nada conheço apesar de, excelente burro, continuar me espantando todos os dias com o que se passa no palco da vida pública e pessoal dos outros e da minha.
A dissidência rendeu dias de debates, os jornais faziam enquetes,
o povo se manifestava, não havia
institutos de pesquisa, as preferências eram chutadas, jornais a
favor do brigadeiro davam um
escore folgado em favor de dona
Gení Gomes. Foi nessa época que
um jornalista, que trabalhava em
dois jornais diferentes, um da
oposição, outro do governo, escrevia virulentos editoriais a favor
de uma e outra opinião, esculhambando, com bom estilo e palavras mordazes, os adversários.
Como disse, era minha estréia
no jornalismo e, de certo modo,
na vida em geral. Ficava pasmo
com aquela brigalhada ridícula e
acho que foi a partir daí que nunca mais levei a sério a política,
sendo admirador e amigo, mas
não correligionário, de gente que
pensa diferentemente, querendo
beber o sangue uns dos outros.
Por precaução, eu também nunca
mais me levei a sério.
Para quem se interessar em saber como a coisa terminou, ficou
o dito pelo não dito, a avenida
tem até hoje o nome do presidente
Vargas, ignoro se existe uma rua
com o nome da progenitora do
brigadeiro, acho que deve haver,
mas não tenho certeza. Quanto
ao Castro Alves, quiseram dar o
nome dele à avenida Atlântica,
mas descobriram que o poeta era
baiano, que ficasse mesmo por lá.
Nem sei por que estou lembrando deste episódio que a memória
nacional esqueceu, mas ficou na
minha, como âncora de tudo o
que se passa não apenas na política mas na própria vida, na minha
e na dos outros.
O fato teve seqüela. A bancada
udenista, com Carlos Lacerda à
frente, foi contra o projeto de Ary
Barroso de construir o estádio
municipal no Maracanã. Os liderados por Lacerda queriam o estádio na barra da Tijuca, que naquele tempo era o destino mais
provável das botas de Judas. Apesar de udenista, Ary convenceu os
18 comunistas e o estádio foi construído no Maracanã, onde está
até agora, esperando que o bispo
Macedo o compre para fazer um
templo evangélico da Igreja Universal.
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