São Paulo, sexta-feira, 24 de setembro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Memória antiga de uma briga ideológica

Entre as coisas espantosas que presenciei na vida em geral uma das mais curiosas foi a minha estréia no jornalismo, cobrindo a Câmara de Vereadores do então Distrito Federal, aqui no Rio, logo após a queda do Estado Novo. Bem verdade que se elegeu uma representação de peso, que outra não houve igual, presidida por João Alberto, que havia sido interventor em São Paulo durante o movimento revolucionário de 30 e foi ministro várias vezes.
A UDN, principal partido de oposição a Vargas, elegera nove ou dez vereadores, com gente de nível nacional, como Carlos Lacerda, Ary Barroso, o poeta Jorge de Lima, autor de "Nêga Fulô" e de "Invenção de Orfeu", Adauto Lúcio Cardoso, mais tarde ministro, presidente da Câmara dos Deputados e membro do Supremo. O Partido Comunista Brasileiro elegeria 18, com nomes históricos em sua bancada, como Agildo Barata, Octavio Brandão, Aparício Torelli (Barão de Itararé). Pela Esquerda Democrática, que se transformaria no Partido Socialista, Osório Borba, jornalista famoso na época.
O primeiro assunto discutido foi a mudança do nome da avenida Presidente Vargas. Era necessário varrer da memória nacional o nome do ex-ditador. Um líder estudantil, filiado à UDN, meu amigo pessoal até hoje, apesar de nossas divergências de opinião, sugeriu em campanha de rua que se desse à maior avenida da então capital da República o nome de Gení Gomes, mãe do brigadeiro Eduardo Gomes, que havia sido derrotado nas eleições de 1946 pelo general Eurico Dutra. O brigadeiro simbolizava não apenas o partido da "eterna vigilância" mas a oposição ao trabalhismo e ao getulismo, que eram mais ou menos a mesma coisa.
A UDN e o PCB, com o pequeno reforço do Partido Socialista, faziam a maioria do plenário e a bancada udenista propôs a mudança do nome de Vargas para o nome da mãe do brigadeiro, com a diferença de que a indicação não falava em "mãe", mas em "progenitora" do brigadeiro.
Num primeiro momento, a bancada do PCB quase ia tomando o bonde errado, mas, que diabo, progenitora por progenitora, por que não a progenitora de Luís Carlos Prestes, líder do partido, que havia sido eleito senador com votação esmagadora e era muito mais histórico do que o brigadeiro?
Comemorava-se, naquele ano, o centenário de nascimento de Castro Alves, que os comunistas adotaram como um ancestral ideológico da causa libertária. Numa reunião em que saíram desaforos de parte a parte, o PCB mudou de idéia, indicando o nome do poeta dos escravos para batizar a avenida monumental.
Desconfiada, a bancada udenista deixou o jovem estudante fazendo sua campanha nas ruas da cidade. Mais tarde seria ele próprio eleito vereador em várias legislaturas -e dos melhores. Tornou-se famoso porque, na estréia de uma peça do Nelson Rodrigues, no Teatro Municipal, quis dar tiros nos atores que estavam no palco.
Eu estava nos 20 anos e nada conhecia da vida, como até hoje nada conheço apesar de, excelente burro, continuar me espantando todos os dias com o que se passa no palco da vida pública e pessoal dos outros e da minha.
A dissidência rendeu dias de debates, os jornais faziam enquetes, o povo se manifestava, não havia institutos de pesquisa, as preferências eram chutadas, jornais a favor do brigadeiro davam um escore folgado em favor de dona Gení Gomes. Foi nessa época que um jornalista, que trabalhava em dois jornais diferentes, um da oposição, outro do governo, escrevia virulentos editoriais a favor de uma e outra opinião, esculhambando, com bom estilo e palavras mordazes, os adversários.
Como disse, era minha estréia no jornalismo e, de certo modo, na vida em geral. Ficava pasmo com aquela brigalhada ridícula e acho que foi a partir daí que nunca mais levei a sério a política, sendo admirador e amigo, mas não correligionário, de gente que pensa diferentemente, querendo beber o sangue uns dos outros. Por precaução, eu também nunca mais me levei a sério.
Para quem se interessar em saber como a coisa terminou, ficou o dito pelo não dito, a avenida tem até hoje o nome do presidente Vargas, ignoro se existe uma rua com o nome da progenitora do brigadeiro, acho que deve haver, mas não tenho certeza. Quanto ao Castro Alves, quiseram dar o nome dele à avenida Atlântica, mas descobriram que o poeta era baiano, que ficasse mesmo por lá.
Nem sei por que estou lembrando deste episódio que a memória nacional esqueceu, mas ficou na minha, como âncora de tudo o que se passa não apenas na política mas na própria vida, na minha e na dos outros.
O fato teve seqüela. A bancada udenista, com Carlos Lacerda à frente, foi contra o projeto de Ary Barroso de construir o estádio municipal no Maracanã. Os liderados por Lacerda queriam o estádio na barra da Tijuca, que naquele tempo era o destino mais provável das botas de Judas. Apesar de udenista, Ary convenceu os 18 comunistas e o estádio foi construído no Maracanã, onde está até agora, esperando que o bispo Macedo o compre para fazer um templo evangélico da Igreja Universal.


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