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ENTREVISTA
O curador Hug critica a visão sociológica da arte e diz que nem toda obra tem de explicar a guerra
Adeus à arte CNN
"A arte cria um espaço livre, fora do domínio da política e da economia. Arte é a anticiência, o antidocumentário"
MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL
Menos política e mais estética. Essa é a equação que o curador Alfons
Hug quer ver na 26ª Bienal Internacional de Arte, que abre amanhã
em São Paulo para convidados e no
domingo para o público.
"Não se pode pedir a toda obra de
arte que explique a guerra", diz
Hug, 54, um alemão que estudou literatura comparada nas universidades de Berlim, Freiburg, Dublin e
Moscou. O exemplo que dá para
ilustrar sua tese é contundente. Durante a Primeira Guerra (1914-1918), uma carnificina que resultou
em 8,5 milhões de mortos, o francês
Claude Monet (1840-1926) pintava
flores, ninféias, "e ninguém o chamava de frívolo", como frisa.
Na entrevista a seguir, o curador
diz que as mostras internacionais
que privilegiam a abordagem sociológica confundem arte com documentário, com ciência, quando
"a essência da arte é a anticiência e,
sobretudo, a anti-reportagem".
Folha - O que dizer com "Território
Livre", tema da Bienal?
Hug - Escolhemos "Território Livre" porque reforça a idéia da liberdade que a arte é capaz de criar, da
autonomia. É importante frisar que
a arte cria um espaço livre, fora do
domínio da política e
da economia. É uma
área extraterritorial na
qual os artistas erigem
os seus postos de observação, podia até dizer, utópicos.
Folha - Mas isso não é
a torre de marfim?
Hug - Não. Não é um
retorno à arte pela arte. É um retorno à arte,
simplesmente. Não se
pode confundir jornalismo com arte, ciência com arte, o que
ocorreu muito nos últimos anos. Nada contra a ciência -ela tem
o seu valor e busca verdades. A arte busca
verdades, só que de uma maneira
muito mais complexa. O que pode
ser verdade para você na leitura de
uma obra de arte pode ser o contrário para mim. Isso não é possível na
ciência. Na ciência, você tem leituras categóricas. A essência da arte é
a anticiência e, sobretudo, a anti-reportagem, o antidocumentário.
Folha - Isso é uma resposta à Documenta de Kassel [a mais prestigiada
das mostras de arte do mundo], que
privilegiou essas questões?
Hug - Não, a Bienal de São Paulo
não critica ninguém. Acho que tem
muito discurso sociológico das curadorias de hoje. Não estou falando
da Documenta, estou falando em
geral. Monet pintou ninféias durante a Primeira Guerra e ninguém
o chamava de frívolo. Por ocasião
do armistício com a Alemanha, em
1918, Monet fez uma homenagem
pintando flores, não um campo de
batalha. Para retratar a guerra como guerra, eu prefiro ver televisão.
O público que vem a uma Bienal é
esclarecido. Mostrar a guerra para
ele é pregar para convertidos. Não
se pode pedir a toda obra de arte
que explique a guerra.
Folha - Então o sr. não exporia
"Guernica" de Picasso?
Hug - Já foi exposto [na 2ª Bienal,
em 53-54]. Não dá para comparar a
situação dos anos 40 com a atual.
Hoje os artistas são mais indiretos.
Folha - O sr. pode dar exemplos?
Hug -Tem um vídeo de um artista
búlgaro, Rassim, que decidiu se
converter ao islamismo como experimento estético- a Bulgária é
um país dos Balcãs, está inserida
nesses conflitos entre Oriente e Ocidente. Ele gravou em vídeo a circuncisão, uma cirurgia complicada
num adulto, com anestesia local e
muito sangue. Ele fez um vídeo da
operação. Muitas pessoas vão achar
chocante as imagens. Posso dizer
que a cirurgia é uma metáfora para
a guerra, para o conflito dos Balcãs,
só que ele não está mostrando a
guerra. Santiago Sierra, um espanhol radicado no México, mostra
uma instalação sonora na qual você
escuta tiros e acha que é uma guerra. Chega perto e parece uma guerra. Mas ele gravou uma festa de réveillon, com fogos de artifício, no
interior do México. Isso é metáfora
inteligente. O artista não deve duplicar o que a gente já viu na CNN.
Folha - Por que o sr. decidiu dar
mais ênfase à pintura?
Hug - Não posso ignorar o fato de
que mais da metade das obras produzidas hoje no mundo são pinturas. Antes, a pintura representava
só 10% dos trabalhos da Bienal. Elevamos para 25%. Privilegiamos a
pintura para fugir um pouco do
controle da curadoria. Não posso ir
ao ateliê discutir o traço com o artista. Quando é instalação, a curadoria pode interferir. O que mais
vejo nas mostras é fotografia e pintura. É uma tendência.
Folha - Isso significa algo?
Hug - A minha opinião pessoal é
que nos países mais industrializados ocorre o retorno à pintura e ao
desenho, o retorno ao zero, como
uma resposta às promessas do
"high tech", do mundo virtual, no
qual já muita gente não acredita
mais. Se quer criticar os desvios da
alta tecnologia, os abismos que a
ciência abre, você não ataca a ciência, volta à pintura. É muito mais
eficaz do que dizer que a tecnologia
é uma merda.
Folha - Por que a fotografia virou
uma mídia dominante?
Hug - Fotografia é tão forte quanto
a pintura até porque existem iconografias dentro da fotografia contemporânea. Elas podem ser classificadas como pintura. Tem a fotografia de paisagem, uma especialidade alemã. A fotografia tem tantos
adeptos porque é o elo com outros
suportes, tem a ver com pintura, escultura e vídeo.
Folha - Por que o sr. apostou em artistas jovens, muitos dos quais não
fizeram exposição individual?
Hug - Também não é assim. Eu
apostei nos jovens no caso dos paulistas: são novíssimos. Até porque
todos os mais maduros já foram
mostrados. A função da Bienal é
descobrir novos talentos. Como estrangeiro, tenho de arriscar. Se faço
uma lista conservadora todo mundo vai dizer: "O alemão não tem noção nenhuma, ele só copiou a lista
dos outros curadores".
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