São Paulo, sábado, 24 de setembro de 2005

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Goytisolo, o escritor de 28 faces

Em "As Semanas do Jardim", 28 narradores questionam a existência do romancista espanhol

Jean Blondin/Reuters
Venda de tapetes em Marrakech, onde Juan Goytisolo vive hoje


JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL

Juan Goytisolo não existe. Seu nome é mera invenção de um círculo de 28 narradores, que o cria para aglutinar sob uma única face suas minguadas produções. A face, cuja foto se pode ver na terceira página deste caderno, não deve passar de truque, fácil em tempos de alta tecnologia. O ano de 1931 e a cidade de Barcelona existiram, sim, mas quanto ao fato de Goytisolo ter nascido neles, tudo indica que seja também invenção.
Essa é a bomba que nos revelam os narradores do recém-traduzido "As Semanas do Jardim", escrito durante três semanas de tertúlias num jardim, em 1997. Nele, os 28 narradores se revezam para contar histórias de Eusébio, poeta espanhol encalacrado num manicômio marroquino. Mas tal grupo acaba por revelar mais sobre o nome que decidem pôr na capa do que sobre o poeta. Até tornando compreensível que, de última hora, o suposto Goytisolo tenha declinado o convite para vir ao Brasil, em julho deste ano. Outras informações, entretanto, hão de ser mais curiosas ou contraditórias.
Por exemplo, o fato de existirem mais de 30 livros de sua suposta autoria, amplamente estudados em outros círculos literários. Também, o fato de terem sido traduzidos para mais de 20 línguas. Mais curioso, o fato de que Goytisolo tenha recebido em pessoa o Prêmio Juan Rulfo que lhe foi outorgado no ano passado, e outros prêmios, como o Europalia.
Surpreende, ainda, que um sujeito de face idêntica à estampada na foto possa ser visto pelas tardes a vagar por Marrakech, alegando habitar a cidade há 30 anos, esporádica ou integralmente. E surpreende, por fim, a firmeza da voz que atravessa as linhas telefônicas para falar com a Folha, nesta entrevista que, de respostas tão incisivas, não durou nem 15 minutos.
 

Folha - Um dos traços distintivos de seu livro é o autor coletivo e a conseqüente "demolição da entidade do romancista". Essa demolição tem se tornado realidade?
Juan Goytisolo -
A realidade total é composta de uma infinidade de fragmentos. No poeta e no romancista falam várias vozes, e nenhuma delas o expressa totalmente. Em nossos tempos, não podemos falar sobre a realidade da maneira como falava Newton. Depois de Einstein e da física quântica, não se pode mais ter uma visão única da realidade.

Folha - A epígrafe de seu livro, a de T.S. Eliot, apresenta a idéia de que é impossível para um poeta alcançar significado por si só. Todo escritor é um autor coletivo?
Goytisolo -
A citação a Eliot é muito justa. "O poeta não pode ser avaliado sozinho; é preciso situá-lo, para fins de comparação e contraste, entre os mortos", é o que ele diz. Essa frase me lembra outra, de Borges [Jorge Luis], de que o autor é o que cria seus predecessores. É verdade. Nunca me interessei em ter discípulos, mas sempre busquei uma árvore genealógica rica, uma árvore da literatura. Tudo o que escrevi após "Reivindicação do Conde Dom Julián" [1970] tem relação com essa árvore. "As Virtudes do Pássaro Solitário", com San Juan de la Cruz. E, quase sempre, com Cervantes e "As Mil e Uma Noites".

Folha - Cervantes e Borges seriam as influências desta obra?
Goytisolo -
A influência de Cervantes é contínua. Todos "cervanteamos" -do verbo "cervantear"- sem sabê-lo, porque ele praticamente realizou a totalidade de manobras do romance. Voluntariamente ou não, todos entramos no território de Cervantes. O mesmo ocorre com "As Mil e Uma Noites", cujos infinitos procedimentos narrativos se disseminaram por todo o Ocidente. E acredito que o melhor leitor dessas noites foi Borges, com seu jardim de textos que se bifurcam.

Folha - Esse livro é a representação de uma utopia social coletiva, como a que o personagem busca?
Goytisolo -
Não acredito em utopias sociais. Apesar de ser necessário um pouco de utopia neste mar de cinismo que nos afoga.

Folha - Na diversidade dos 28 narradores, há uma intenção, como a de James Joyce, de abarcar um panorama estético da literatura?
Goytisolo -
Sim. Há que se buscar, como Joyce, estar à escuta das vozes do mundo. Não só estar atento a uma voz, mas escutar a polifonia que nos oferece a cada dia qualquer cidade. Sou um animal urbano e, na cidade, estou à escuta das vozes que me rodeiam.


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