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Livro desmonta a máquina que faz a literatura
DA REPORTAGEM LOCAL
Louve-se a coragem e a clareza
do narrador que, já de partida, revela a que veio e a que se presta. Se
"quem narra" e "por que narra"
são indagações básicas para a
análise de qualquer ficção, Juan
Goytisolo, no romance "As Semanas do Jardim", parece querer facilitar ainda mais a sobranceira
vida de acadêmicos e resenhistas.
De cara, já no primeiro capítulo,
apresentam-se os 28 narradores,
constituídos de "jornalistas, cinéfilos, autores bisonhos, sociólogos" e uma lista de profissões e interesses que se estende por algumas linhas. Em seguida, apresentam-se os propósitos maiores, de
"eliminar certa noção opressiva e
onipresente do Autor" e de realizar "a demolição sistemática da
entidade do romancista". Linhas
antes, o propósito menor -comumente conhecido como enredo-, a saber: o de contar a obscura história do poeta Eusébio,
internado em julho de 1936 num
hospital psiquiátrico marroquino, após ter fugido da Espanha na
iminência do regime franquista.
Para facilitar ainda mais a previsível análise, em uma só frase o
texto definirá suas tão buscadas
influências, de quebra esboçando
para o leitor a forma que o livro,
aos poucos, há de tomar: "Nosso
jardim cervantino, com seus canteiros e maços de flores, era também o de Borges: caminhos e bifurcações, avanços e ramificações, paradas e retrocessos".
Vinte e sete outros narradores,
então, em capítulos constituindo
leituras absorvidas pelo coletivo,
destrincharão suas descobertas e
elucubrações quanto a possíveis
origens e destinos do poeta Eusébio. De cada uma das narrativas,
resultantes de pesquisas de campo ou bibliográficas, de depoimentos memorialísticos ou criações ficcionais menos ou mais
fundadas, em primeira ou em terceira pessoa, emanará um Eusébio particular. E exalará, também,
e isso talvez seja mais importante,
uma Marrakech peculiar, com cidadãos e episódios peculiares, estudados e minuciados por essas
tantas visões estrangeiras.
Goytisolo, ainda, não se priva de
ambições maiores, tampouco
tentando minimizá-las ou desmenti-las. Com esses 28 relatos, o
autor quer constituir, sim, à maneira de James Joyce em "Ulisses", sim, um panorama estético
da literatura contemporânea.
Posto que seu livro não resulta tão
variado e abrangente quanto o de
Joyce, ou mesmo tão universal, o
certo é não se lhe pode negar a utilização de uma infinidade de recursos narrativos e nuances diversas da língua, o que torna o intuito bem-sucedido.
Talvez já seja presumível que,
como Marrakech e a estética,
também o personagem será camaleônico, nunca sendo possível
apreender sua real natureza, ou
mesmo os episódios que tenha vivido nesses distantes anos. Eusébio será um militante torturado,
um beberrão, um rabugento, um
pederasta, o polido freqüentador
de um restaurante chique. E, a
partir do conhecimento de cada
uma dessas facetas, Goytisolo aos
poucos nos ensinará que, ainda
que os narradores se apresentem
com clareza e segurança, com inspiração e ascendência, é preciso
sempre, como leitores ou como
ouvintes, desconfiar deles.
Se a história se conclui? Se descobrimos quem foi e o que viveu
Eusébio? Talvez não, mas convém
colocar o exemplo do narrador
que bradou "A história é a história, e o romancista deve submeter-se a ela!" e foi em seguida enxotado pelos demais.
(JFu)
As Semanas do Jardim
Autor: Juan Goytisolo
Tradução: Luis Reyes Gil
Editora: Agir
Quanto: R$ 24,90 (160 págs.)
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