São Paulo, sábado, 24 de setembro de 2005

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Livro desmonta a máquina que faz a literatura

DA REPORTAGEM LOCAL

Louve-se a coragem e a clareza do narrador que, já de partida, revela a que veio e a que se presta. Se "quem narra" e "por que narra" são indagações básicas para a análise de qualquer ficção, Juan Goytisolo, no romance "As Semanas do Jardim", parece querer facilitar ainda mais a sobranceira vida de acadêmicos e resenhistas.
De cara, já no primeiro capítulo, apresentam-se os 28 narradores, constituídos de "jornalistas, cinéfilos, autores bisonhos, sociólogos" e uma lista de profissões e interesses que se estende por algumas linhas. Em seguida, apresentam-se os propósitos maiores, de "eliminar certa noção opressiva e onipresente do Autor" e de realizar "a demolição sistemática da entidade do romancista". Linhas antes, o propósito menor -comumente conhecido como enredo-, a saber: o de contar a obscura história do poeta Eusébio, internado em julho de 1936 num hospital psiquiátrico marroquino, após ter fugido da Espanha na iminência do regime franquista.
Para facilitar ainda mais a previsível análise, em uma só frase o texto definirá suas tão buscadas influências, de quebra esboçando para o leitor a forma que o livro, aos poucos, há de tomar: "Nosso jardim cervantino, com seus canteiros e maços de flores, era também o de Borges: caminhos e bifurcações, avanços e ramificações, paradas e retrocessos".
Vinte e sete outros narradores, então, em capítulos constituindo leituras absorvidas pelo coletivo, destrincharão suas descobertas e elucubrações quanto a possíveis origens e destinos do poeta Eusébio. De cada uma das narrativas, resultantes de pesquisas de campo ou bibliográficas, de depoimentos memorialísticos ou criações ficcionais menos ou mais fundadas, em primeira ou em terceira pessoa, emanará um Eusébio particular. E exalará, também, e isso talvez seja mais importante, uma Marrakech peculiar, com cidadãos e episódios peculiares, estudados e minuciados por essas tantas visões estrangeiras.
Goytisolo, ainda, não se priva de ambições maiores, tampouco tentando minimizá-las ou desmenti-las. Com esses 28 relatos, o autor quer constituir, sim, à maneira de James Joyce em "Ulisses", sim, um panorama estético da literatura contemporânea. Posto que seu livro não resulta tão variado e abrangente quanto o de Joyce, ou mesmo tão universal, o certo é não se lhe pode negar a utilização de uma infinidade de recursos narrativos e nuances diversas da língua, o que torna o intuito bem-sucedido.
Talvez já seja presumível que, como Marrakech e a estética, também o personagem será camaleônico, nunca sendo possível apreender sua real natureza, ou mesmo os episódios que tenha vivido nesses distantes anos. Eusébio será um militante torturado, um beberrão, um rabugento, um pederasta, o polido freqüentador de um restaurante chique. E, a partir do conhecimento de cada uma dessas facetas, Goytisolo aos poucos nos ensinará que, ainda que os narradores se apresentem com clareza e segurança, com inspiração e ascendência, é preciso sempre, como leitores ou como ouvintes, desconfiar deles.
Se a história se conclui? Se descobrimos quem foi e o que viveu Eusébio? Talvez não, mas convém colocar o exemplo do narrador que bradou "A história é a história, e o romancista deve submeter-se a ela!" e foi em seguida enxotado pelos demais. (JFu)


As Semanas do Jardim
Autor:
Juan Goytisolo
Tradução: Luis Reyes Gil
Editora: Agir
Quanto: R$ 24,90 (160 págs.)


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