São Paulo, sábado, 24 de setembro de 2005

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RODAPÉ

O acossado

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Sartre sobreviverá à injúria das homenagens por seu centenário de nascimento. Com raras exceções, as matérias que apareceram na imprensa brasileira compensam o constrangimento da efeméride com comentários recorrendo aos engajamentos políticos do filósofo para explicar que o existencialismo foi apenas um modismo (que, entretanto, não se perde a oportunidade de industrializar).
Há nisso muito de má-fé e ressentimento contra a figura do "intelectual". Com relação a seu alinhamento aos comunistas, trata-se de um anacronismo julgá-lo hoje, quando a União Soviética nem existe mais, e não no contexto dos anos 50, em que no outro lado do espectro ideológico estavam os atuais criadores da "guerra cirúrgica" e legisladores da energia atômica -que pouco antes tinham dizimado sem necessidade militar a população civil da cidade de Dresden, na Alemanha, e promovido o holocausto nuclear de Hiroshima e Nagasaki, no Japão.
De resto, o tipo de intelectual "em situação" criado por Jean-Paul Sartre é aquele que jamais silencia diante das contingências -e o que se pode talvez censurar não é o fato de ele ter dado respostas definitivas (pois soube expor publicamente suas contradições após a invasão soviética da Hungria ocorrida em 1956), mas de não ter modificado suas perguntas, preservando uma noção de consciência que paira, soberana, sobre a substância dos fatos históricos.
Mas questões "fenomenológicas" soam como palavrão para quem segue o catecismo do senso comum e só consegue admirar Roquentin (protagonista de "A Náusea") porque purgou a literatura de todo compromisso e simbiose com o mundo.
Felizmente, para contrabalançar, existem os livros de Jean-Paul Sartre, em especial aqueles entre a ficção e a filosofia, em que percebemos a passagem de uma fala "sobre" o mundo para a invenção de um horizonte pessoal de referências que, ao conservar a memória daquilo que desencadeou a escrita, oferece a possibilidade de transtornar a realidade pela palavra.
É o caso de "O Seqüestrado de Veneza", que traz dois ensaios publicados em revistas e incluídos posteriormente em "Situações 4". Um ensaio prepara e dá sentido ao outro. O primeiro, "Veneza de Minha Janela" (1953), é uma antidescrição que potencializa o irrealismo da cidade italiana, "sempre um finisterra diante mim".
Essa navegação de sonho pelos canais lança o viajante numa contemplação em que seres e entes deixaram de ser familiares. Em Veneza, "a espécie humana -ou, quem sabe, o processo histórico- se retrai, pequeno pulular limitado no espaço e no tempo"; "os palácios (...) já perderam essa brutalidade ingênua da presença, essa tola e peremptória suficiência da coisa que está aí e que "não se pode negar'".
Nas entrelinhas, percebem-se as correspondências com o trabalho do filósofo: Veneza é o emblema da opacidade da coisa "em si" com a qual só nesse plano ensaístico-poético a consciência ("para si") consegue se comunicar.
E, no ensaio que dá título ao livro, de 1957, Sartre faz viver no pintor Tintoretto (1519-1594) a personagem ideal dessa cidade ausente. Como observa Luiz Marques (autor de notas que corrigem imprecisões dos estudos disponíveis à época de Sartre), o escritor "renuncia à tradição da écfrase, isto é, à descrição da obra de arte visual".
Trata-se, portanto, de um esboço biográfico-ficcional em que Jacopo Robusti, o habilidoso filho de tintureiro (daí a alcunha "Tintoretto"), faz de sua condição de artesão uma arma, produzindo em escala industrial, vendendo suas telas a preço de liqüidação, ocupando todos os espaços públicos e sendo acusado de pirataria.
"Arrivista corroído pelo medo", Tintoretto conquista sua liberdade a partir das forças que o esmagam. "Essa violência diligente e quase sádica que chamarei de o pleno emprego de si mesmo" corresponde, assim, à visão sartreana do artista como consciência torturada de seu tempo -consciência que ele mesmo, Sartre, foi e continua sendo.


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço

O Seqüestrado de Veneza
    
Autor: Jean-Paul Sartre
Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 38 (104 págs.)


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