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RODAPÉ
O acossado
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Sartre sobreviverá à injúria
das homenagens por seu centenário de nascimento. Com raras
exceções, as matérias que apareceram na imprensa brasileira
compensam o constrangimento
da efeméride com comentários
recorrendo aos engajamentos políticos do filósofo para explicar
que o existencialismo foi apenas
um modismo (que, entretanto,
não se perde a oportunidade de
industrializar).
Há nisso muito de má-fé e ressentimento contra a figura do "intelectual". Com relação a seu alinhamento aos comunistas, trata-se de um anacronismo julgá-lo
hoje, quando a União Soviética
nem existe mais, e não no contexto dos anos 50, em que no outro
lado do espectro ideológico estavam os atuais criadores da "guerra cirúrgica" e legisladores da
energia atômica -que pouco antes tinham dizimado sem necessidade militar a população civil da
cidade de Dresden, na Alemanha,
e promovido o holocausto nuclear de Hiroshima e Nagasaki, no
Japão.
De resto, o tipo de intelectual
"em situação" criado por Jean-Paul Sartre é aquele que jamais silencia diante das contingências
-e o que se pode talvez censurar
não é o fato de ele ter dado respostas definitivas (pois soube expor
publicamente suas contradições
após a invasão soviética da Hungria ocorrida em 1956), mas de
não ter modificado suas perguntas, preservando uma noção de
consciência que paira, soberana,
sobre a substância dos fatos históricos.
Mas questões "fenomenológicas" soam como palavrão para
quem segue o catecismo do senso
comum e só consegue admirar
Roquentin (protagonista de "A
Náusea") porque purgou a literatura de todo compromisso e simbiose com o mundo.
Felizmente, para contrabalançar, existem os livros de Jean-Paul
Sartre, em especial aqueles entre a
ficção e a filosofia, em que percebemos a passagem de uma fala
"sobre" o mundo para a invenção
de um horizonte pessoal de referências que, ao conservar a memória daquilo que desencadeou a
escrita, oferece a possibilidade de
transtornar a realidade pela palavra.
É o caso de "O Seqüestrado de
Veneza", que traz dois ensaios
publicados em revistas e incluídos
posteriormente em "Situações 4".
Um ensaio prepara e dá sentido
ao outro. O primeiro, "Veneza de
Minha Janela" (1953), é uma antidescrição que potencializa o irrealismo da cidade italiana, "sempre
um finisterra diante mim".
Essa navegação de sonho pelos
canais lança o viajante numa contemplação em que seres e entes
deixaram de ser familiares. Em
Veneza, "a espécie humana -ou,
quem sabe, o processo histórico- se retrai, pequeno pulular limitado no espaço e no tempo";
"os palácios (...) já perderam essa
brutalidade ingênua da presença,
essa tola e peremptória suficiência da coisa que está aí e que "não
se pode negar'".
Nas entrelinhas, percebem-se as
correspondências com o trabalho
do filósofo: Veneza é o emblema
da opacidade da coisa "em si"
com a qual só nesse plano ensaístico-poético a consciência ("para
si") consegue se comunicar.
E, no ensaio que dá título ao livro, de 1957, Sartre faz viver no
pintor Tintoretto (1519-1594) a
personagem ideal dessa cidade
ausente. Como observa Luiz Marques (autor de notas que corrigem imprecisões dos estudos disponíveis à época de Sartre), o escritor "renuncia à tradição da écfrase, isto é, à descrição da obra de
arte visual".
Trata-se, portanto, de um esboço biográfico-ficcional em que Jacopo Robusti, o habilidoso filho
de tintureiro (daí a alcunha "Tintoretto"), faz de sua condição de
artesão uma arma, produzindo
em escala industrial, vendendo
suas telas a preço de liqüidação,
ocupando todos os espaços públicos e sendo acusado de pirataria.
"Arrivista corroído pelo medo",
Tintoretto conquista sua liberdade a partir das forças que o esmagam. "Essa violência diligente e
quase sádica que chamarei de o
pleno emprego de si mesmo" corresponde, assim, à visão sartreana
do artista como consciência torturada de seu tempo -consciência que ele mesmo, Sartre, foi e
continua sendo.
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço
O Seqüestrado de Veneza
Autor: Jean-Paul Sartre
Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 38 (104 págs.)
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