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MARCELO COELHO
"Parade" gira entre a aura e o fetiche da arte moderna
Um painel gigantesco de Picasso, poucas vezes visto
em qualquer lugar do mundo;
uma série vertiginosa de quadros
de Kandinsky, mostrando o nascimento, ano a ano, da pintura
abstrata; a famosa roda de bicicleta de Duchamp; um curta-metragem dirigido por Jean Genet;
esculturas de Brancusi, Modigliani e Giacometti: 250 obras trazidas do Centro Pompidou, cobrindo todo o século 20, estão na Oca
do parque Ibirapuera.
Era para ser -com perdão da
breguice do termo- a "mega-exposição" do ano em São Paulo,
mas não sei de muita gente que
tenha ido ver "Parade" por enquanto. É provável que exposições dedicadas a um único artista
sejam mais fáceis de divulgar e
que o simples nome de "Parade"
não dê conta da riqueza do material exposto. Mas a exposição da
Oca é fantástica e fica até janeiro.
Fazia tempo que eu não adotava esse tom meio propagandístico
nos artigos e, na verdade, ando
bem incomodado com textos elogiosos em geral; de resto, voltar a
falar de "cultura" depois dos
atentados em Nova York não deixa de ser um tanto estranho. Como se falar de cultura não fosse
sempre estranho, aliás.
Acontece que essa questão já estava colocada ao longo de todo o
século 20, como a própria exposição parece evidenciar. Depois da
Primeira Guerra, o ideal de uma
arte recreativa, "bonita", "civilizada", deixou de fazer sentido, e
as tentativas de ruptura (ou reatamento) com isso passaram ao
centro do debate.
O que me parece interessante
em "Parade" é o modo com que se
tratou todo o potencial de choque, de ruptura, de "desembelezamento" da arte moderna. Tome-se a famosa roda de bicicleta
de Duchamp. Em tese era para ser
uma simples roda de bicicleta, um
objeto do dia-a-dia -e a intenção de Duchamp, ao colocá-la
num museu, teria sido a de contestar as próprias idéias de "obra
de arte", de "beleza" etc.
Com o tempo, criou-se um efeito perverso -sem ser "obra de arte" no sentido tradicional, a peça
de Duchamp adquiriu um valor
de fetiche. O público passa a visitar o museu e querer ver ("conferir", como se diz) a roda de bicicleta que, bem ou mal, é igualzinha a uma roda de bicicleta qualquer.
Mais ainda no caso do famoso
urinol: aquilo que era para ser
um instrumento de dessacralização da arte passou a ser cultuado,
ressacralizado; a crueza prosaica
daquela provocação de Duchamp
foi como que neutralizada, cercou-se de um respeito místico:
"favor não tocar".
Mas essa nova aura, essa ressacralização tinha algo de estranho,
de artificial, de autoritário até. O
cidadão comum fica irritado.
"Como assim? Como é que esse
simples urinol, esse quadro em
branco, essa lata de sopa, são vendidos a preços astronômicos?" O
valor histórico, o valor de "relíquia" desses objetos não se impõe
por si mesmo, ao simples olhar do
visitante.
Em "Parade", a forma de expor
cada obra, a cenografia, como se
diz, parece ter-se encarregado de
reestetizar, de revalorizar, de cercar de uma aura visível as peças
apresentadas ao público. A roda
de bicicleta, por exemplo, está
meio que esquecida num canto,
iluminada de forma oblíqua, projetando uma sombra na parede;
revestiu-se de um ar romântico,
misterioso, cálido, bastante diverso do tom objetivo, de asserção
sarcástica, de blefe que deve ter tido de início.
Na mesma sala da roda de bicicleta, duas cabeças -uma de
Brancusi, outra de Modigliani-
são apresentadas sob a luz de
uma lâmpada giratória. Ao lado,
os círculos de uma tela de Kupka.
Dominando a sala, há a grande
maquete do monumento à revolução de Tatlin (uma torre em espiral). O movimento de descida
em espiral será o mesmo que o espectador fará ao percorrer a exposição inteira, que deve ser vista
a partir do último andar.
Esse percurso imita a rampa do
Guggenheim de Nova York; em
outro andar, os quadros de "Parade" são expostos em espécies de
cavaletes que homenageiam o
modo de exposição imaginado
por Lina Bardi para o Masp.
O que significa tudo isso? Se os
motivos visuais da espiral e do
círculo em movimento compõem,
em "Parade", o modo de apresentação das obras, é como se estas
deixassem de existir "isoladamente", no ato de ruptura e de
autonomia que propuseram a seu
tempo, para participar de uma
nova forma de tradição, de ordem, de ambientação, de "sentido" -coisas conferidas pelo expositor; uma colagem de obras,
uma instalação de quadros e esculturas, por assim dizer.
Claro que isso não desfaz o que
cada obra, em si, tem a oferecer;
claro, também, que nunca nenhuma obra existiu no total isolamento, na total autonomia com
relação à tradição; claro, ainda,
que nem toda obra do século 20
estava engajada num projeto de
ruptura tão radical quanto o da
roda de bicicleta. E podemos entender a ambientação cinematográfica de "Parade" como um esforço conservador, no sentido de
um "reembelezamento" das
obras; mas também como um
passo crítico, à medida que contesta o mero fetichismo, a mera
busca turística do "autêntico", do
"original", que está presente
quando entramos num museu.
Entre o cinema e o turismo, entre a aura e o fetiche, talvez o
mundo dos museus e das mega-exposições esteja de fato andando
em círculos; justo o oposto de uma
"parade" -termo que, aos ouvidos brasileiros, sugere tanto um
desfile militar quanto uma interrupção do movimento, tanto um
progresso linear quanto a sua suspensão. Eu, aliás, é que paro por
aqui, enquanto as marchas militares seguem pela TV.
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