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FILARMÔNICA DE DRESDEN
Um concerto para endireitar a alma
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Uma cantata de Bach
(1685-1750) e a "Missa em
Dó Maior" de Beethoven (1770-1827): música para ninguém botar defeito. E ninguém teria por
que botar defeito no concerto da
Filarmônica de Dresden, regida
por Roderich Kreile, anteontem
na Sala São Paulo. Com o Coro da
Igreja de Santa Cruz por trás -96
meninos, alguns em idade de já
estar na cama àquela hora- e à
frente um bom quarteto de solistas, a filarmônica deu um concerto desses de endireitar a alma, ou
o espírito, ou o id, ou que nome
for para o que nos tem por dentro.
Bach chamava de "alma", e o
diálogo entre ela (soprano Ute
Selbig) e Jesus (baixo Andreas
Scheibner) forma um dos pontos
altos da Cantata 21, "Ich hatte viel
Bekümernis". Já é uma cantata incrivelmente elaborada, para 1714.
Alterna seções concertantes, árias
e massas polifônicas (à maneira
dos motetos). Explora pequenos
motivos -como a simples "appoggiatura", uma nota dissonante acentuada, antes de resolver-
com inspiração incomum.
Não estava indicado no programa o nome do oboé solista (Volker Braun?). Mas ele ganhou o reino dos céus.
Bom evangelista (Johannes
Chum), mezzo equilibrada (Susanna Moncayo von Hase). Vestidos horríveis, mas isso não faz
muita diferença.
Faz diferença serem meninos
cantando? Toda. Não só porque,
do alto dos seus aproximadamente 700 anos de tradição, o coro soa
justificadamente seguro. Mas
porque o som das vozes, pré-psicanalisadas, confere à música certa neutralidade que, no caso, só
adiciona sentido a ela mesma.
Nada mais diferente do que o
som da filarmônica tocando Beethoven, depois. É muito raro escutar uma orquestra capaz de tamanha metamorfose -e basta isso, aliás, para que se entenda a importância real do regente. A "Missa" foi terrena, arrojada, voltada
para a própria música como instrumento de liberação.
Escutar esse Beethoven, depois
desse Bach, é uma lição inclusive
musical, embora "música", nesse
contexto, seja uma palavra pobre.
"Compaixão", "coragem", seria
preciso entrar por essas vias para
dar conta do que se ouviu.
Foi inspiradíssimo, então? Não
exatamente. A sensação que fica é
a de uma orquestra capaz de tocar
sempre assim. A sensação que resta é a de nós mesmos, reduzidos
sempre ao que nos tem por dentro, sempre salvos por música assim.
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