São Paulo, quinta-feira, 24 de outubro de 2002

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FILARMÔNICA DE DRESDEN

Um concerto para endireitar a alma

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Uma cantata de Bach (1685-1750) e a "Missa em Dó Maior" de Beethoven (1770-1827): música para ninguém botar defeito. E ninguém teria por que botar defeito no concerto da Filarmônica de Dresden, regida por Roderich Kreile, anteontem na Sala São Paulo. Com o Coro da Igreja de Santa Cruz por trás -96 meninos, alguns em idade de já estar na cama àquela hora- e à frente um bom quarteto de solistas, a filarmônica deu um concerto desses de endireitar a alma, ou o espírito, ou o id, ou que nome for para o que nos tem por dentro.
Bach chamava de "alma", e o diálogo entre ela (soprano Ute Selbig) e Jesus (baixo Andreas Scheibner) forma um dos pontos altos da Cantata 21, "Ich hatte viel Bekümernis". Já é uma cantata incrivelmente elaborada, para 1714. Alterna seções concertantes, árias e massas polifônicas (à maneira dos motetos). Explora pequenos motivos -como a simples "appoggiatura", uma nota dissonante acentuada, antes de resolver- com inspiração incomum.
Não estava indicado no programa o nome do oboé solista (Volker Braun?). Mas ele ganhou o reino dos céus.
Bom evangelista (Johannes Chum), mezzo equilibrada (Susanna Moncayo von Hase). Vestidos horríveis, mas isso não faz muita diferença.
Faz diferença serem meninos cantando? Toda. Não só porque, do alto dos seus aproximadamente 700 anos de tradição, o coro soa justificadamente seguro. Mas porque o som das vozes, pré-psicanalisadas, confere à música certa neutralidade que, no caso, só adiciona sentido a ela mesma.
Nada mais diferente do que o som da filarmônica tocando Beethoven, depois. É muito raro escutar uma orquestra capaz de tamanha metamorfose -e basta isso, aliás, para que se entenda a importância real do regente. A "Missa" foi terrena, arrojada, voltada para a própria música como instrumento de liberação.
Escutar esse Beethoven, depois desse Bach, é uma lição inclusive musical, embora "música", nesse contexto, seja uma palavra pobre. "Compaixão", "coragem", seria preciso entrar por essas vias para dar conta do que se ouviu.
Foi inspiradíssimo, então? Não exatamente. A sensação que fica é a de uma orquestra capaz de tocar sempre assim. A sensação que resta é a de nós mesmos, reduzidos sempre ao que nos tem por dentro, sempre salvos por música assim.


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