São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TV

Pesquisador desvenda mistérios da produção de novelas no país e na América Latina

Celeiro intelectual, USP aprova "doutor noveleiro"

LAURA MATTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Por que brasileiro gosta tanto de novela? Isso é bom para o país? Por que só a Globo faz sucesso com teledramaturgia no Brasil?
Celeiro da intelectualidade, a Universidade de São Paulo abriu espaço para a pesquisa do "doutor noveleiro" Mauro Alencar, 42.
Autor do livro "A Hollywood Brasileira - Panorama da Telenovela no Brasil", ele teve aprovada pela Escola de Comunicações e Artes, no mês passado, a tese de doutorado "América Latina: O Paraíso das Telenovelas". Ex-estagiário do SBT e da Cultura e consultor da Globo há dez anos, Alencar foi ao México, Chile, Cuba, Argentina, Venezuela, Miami, Uruguai e Colômbia para mapear a produção de teledramaturgia.
Descobriu que a novela não é um "vício" brasileiro, mas latino. E que, apesar da supremacia da Globo, há muito mercado mais fervilhante do que o brasileiro continente afora. Leia abaixo:
 

Folha - Por que o brasileiro gosta tanto de ver novela?
Mauro Alencar -
Não é só no Brasil, mas na América Latina toda, incluindo a parte hispânica dos EUA. Isso está na formação cultural do povo, na maneira como passa a se enxergar, a se espelhar e a transformar a história em capítulos em sua grande tribuna. Começou com a radionovela em Miami, nos anos 30, que passou para Cuba e se espalhou. Do mesmo jeito que o Brasil pára para ver a surra de Maria Clara em Laura ["Celebridade"], Havana ficava em silêncio com a transmissão da radionovela "El Derecho de Nacer" ["O Direito de Nascer", transformada em telenovela, inclusive no Brasil].

Folha - Por que a novela costuma ser considerada produto cultural inferior a uma peça ou um filme?
Alencar -
Porque foi desenvolvida por empresários da Gessy Lever e da Colgate Palmolive, em Miami. Pensaram: "Como vamos prender a ouvinte em casa e fazê-la comprar sabão em pó?". O preconceito vem desse início publicitário, bem mais do que pelo fato de a novela ter em sua origem o folhetim, que é literatura popular.

Folha - O que diria para quem acredita que assistir a novelas empobrece culturalmente?
Alencar -
É preciso ver a novela com outro olhar. Ela traz benefícios sociais, de agregação familiar. É entretenimento, não educa, o que é função da escola e da família. Mas também não deseduca.

Folha - Há no Brasil a possibilidade de uma emissora de TV ser forte sem uma novela de sucesso?
Alencar -
Não. Não se cria hábito no telespectador brasileiro sem novela. Quando tínhamos a Tupi [extinta em 80], que produzia novelas, havia uma indústria realmente equilibrada no Brasil, como há no México, com a líder Televisa e a concorrente, a TV Azteca. Veio a Band, com "Os Imigrantes" [81/82] e outras, e pensamos que ocuparia o lugar da Tupi, mas nada. Depois a Manchete, com "Pantanal" [90], "Xica da Silva" [97] etc. E saiu do ar em 99. O SBT é essa história rocambolesca, sem estratégia novelística. Seria a Azteca do Brasil, enquanto a Globo, a Televisa. Mas a Azteca investe, tem curso para formar mão-de-obra. "A Escrava Isaura", da Record, é um bom produto. Mas a rede tem de pensar na próxima.

Folha - Por que é difícil fazer novela de audiência fora da Globo?
Alencar -
Porque a Globo, em 69, reuniu um time que deu base à moderna telenovela brasileira. Começou a pensar em novela não como um produto isolado. Vai desde o cuidado com a sinopse até a venda no exterior. Isso não aconteceu com outras emissoras, também prejudicadas por dificuldades econômicas. É preciso montar um núcleo estável de teledramaturgia. É bom chamar um cara com a experiência do Herval Rossano [diretor de "Escrava Isaura" na Globo, contratado pela Record]. Mas não basta uma novela ir bem. É obrigatório pensar na segunda. Na Colômbia, na Venezuela, há redes com condições semelhantes às do SBT, Record, que produzem novelas de sucesso, exportadas para vários países.

Folha - O que acha do fato de a TV exibir hoje 14 novelas por dia, sendo que seis delas são brasileiras?
Alencar -
Não há mão-de-obra suficiente e espaço no mercado para a produção de 14 nacionais. Mas com certeza seria viável uma concorrente da Globo com duas novelas de boa audiência.

Folha - Produzir novela não é muito caro? Ou é possível criar um bom produto com menos do que os R$ 200 mil de cada capítulo global?
Alencar -
Dinheiro é preciso, mas a novela gera muito lucro, com trilha sonora, merchandising, exportação e promoções. E na América Latina há novelas de grande audiência nas quais não se gasta tanto, como a "Usurpadora", da Televisa. "Ninho da Serpente" [Band, 82] não tinha muito dinheiro, mas um texto primoroso e uma direção excelente.

Folha - A Globo se reestabilizou no Ibope da teledramaturgia ao investir no novelão, com os romances de sempre e poucas inovações. Uma história diferente, como foi "Guerra dos Sexos" (83/84), é uma ruptura cada vez mais esporádica?
Alencar -
Sim, e estou sentindo falta de rupturas. Isso se deve ao aumento da busca por audiência, que inibe inovações, e à falta de concorrência na teledramaturgia. Era diferente quando havia a Tupi. Com as duas produzindo novela, vieram as ousadias estéticas.

Folha - Na tese, você afirma que as classes sociais mais baixas são menos abertas a mudanças na TV.
Alencar -
São. Quando a Globo exibia novela mais experimental às 22h, tinha dificuldade em atrair o público de menor poder aquisitivo. Outro ponto: essa classe não gosta de ver pobreza nas novelas. "Brasileiras e Brasileiros" [SBT, 91], que mostrava a miséria, foi um fracasso. A pobreza vai todo dia à casa do telespectador, tem de ser estilizada. As pessoas querem sonhar com a ascensão e ver que rico também tem problemas. Está aí a razão do sucesso de "Os Ricos Também Choram".


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: A opinião do especialista
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.