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'O Gosto da Cereja' amarga
da Redação
Se houve política na premiação
de Cannes 97, e houve, ela não visou chamar a atenção para a luta
dos cineastas (e outros) contra a
censura (e outros) no Irã.
Ou seja, "O Gosto da Cereja"
não dividiu a Palma de Ouro com
"A Enguia", de Shohei Imamura,
por razões extracinematográficas
(sabe-se que "O Gosto da Cereja"
quase foi proibido de participar do
evento pelas autoridades iranianas).
A atitude do júri foi política, sim,
mas por retomar a tradição de dar
até mesmo o grande prêmio do
festival a filmes com produção pequena, mas imensamente fortes,
como no caso desse trabalho de
Abbas Kiarostami.
O júri foi tão mais corajoso porque dessa vez Kiarostami veio um
tanto mudado. Até aqui, seus filmes nunca descreviam um mundo
feliz. Havia pobreza, terremotos,
angústia. Mas, a todas as vicissitudes, o cineasta sempre contrapôs a
força da vida.
Graças a ela, seus filmes costumam ser banhados de um vislumbre eloquente de felicidade, que
nos toca e contagia (embora no
Brasil seus filmes não sejam muito
bem aceitos, em parte porque a
política de exibição, voltada apenas para o cinema americano, está
arruinando o gosto e a simples capacidade de olhar). "O Gosto da
Cereja" vai em outra direção.
A história começa com um homem, em seu carro, à procura de
homens. Seria paquera? Leva jeito.
A busca leva meia hora, ou quase.
Em todo caso, esse aspecto homossexual é ambíguo e discreto.
Ao fim de certo tempo, o homem
revela a razão de sua busca: quer se
suicidar e procura alguém que enterre seu corpo após a morte.
Mesmo na cópia em vídeo (a única que a 21ª Mostra pôde fornecer
antecipadamente), é possível perceber que a ambientação criada
pelo diretor é diferente dos filmes
anteriores. Tudo é desértico, árido. A natureza é agônica, embora
o rosto do homem permaneça sereno.
O filme então pode ser visto assim: um homem pretende se matar, violando um tabu religioso
(não só muçulmano), e quer se
matar porque é homossexual, outro tabu (não só muçulmano).
Não se trata, portanto, de um filme do encanto, mas do desencanto. E, ainda que o gosto da cereja
seja mencionado (não efetivamente sentido), é um filme do desgosto. Não é o Irã infantil ou adolescente que já se viu no passado. É
um país que chega à idade adulta
em ritmo de serviço militar, com
relações pessoais deterioradas pelo medo e por superstições que
tornam o outro incompreensível.
É tão diferente assim em outros
lugares? Isso é o que parece se perguntar Kiarostami, pois seu filme
tem dupla função. Internamente,
ele é efetivamente político. No exterior, porém, não funciona como
cinema "de denúncia". Ao contrário, parece procurar afinidades
na depressão.
Dessa vez, Kiarostami nos conduz por paragens pedregosas, embora, o que é essencial, sem perder
o sentido da beleza. Há momentos
em que o protagonista senta-se
diante da paisagem árida. Então,
para o espectador, a idéia de suicídio parece absurda: como abandonar a vida voluntariamente, quando, mesmo no desespero, a beleza
e o gosto da existência podem ser
entrevistas em cada coisa?
"O Gosto da Cereja" é, enfim,
aquilo que mostra: um filme amargo, ao qual nossa imaginação pode
acrescentar o gosto doce e a cor vibrante do fruto apenas evocado.
(INÁCIO ARAUJO)
Onde: amanhã, às 19h10, no Masp -
Grande Auditório
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