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FESTIVAL DE BRASÍLIA
Antiépico, "Brava Gente Brasileira" retrata contato entre índios e brancos na colonização do país
Lúcia Murat inverte o mito de Iracema
JOSÉ GERALDO COUTO
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA
Uma visão antiépica, quase intimista, do contato entre índios e
brancos na colonização do Brasil
é o que oferece ao espectador o
longa-metragem "Brava Gente
Brasileira", que será exibido hoje,
em competição, no 33º Festival de
Cinema de Brasília.
A diretora Lúcia Murat, de "Que
Bom Te Ver Viva" e "Doces Poderes", partiu de um episódio real
-as escaramuças entre os portugueses e os "índios cavaleiros"
guaicurus na região do Forte
Coimbra, no Pantanal, em 1778-
para tecer uma delicada trama de
relações entre indivíduos e culturas inconciliáveis.
No centro desse mundo movediço de ataques e contra-ataques
na mata ameaçadora, desponta a
complexa relação de amor e poder entre um branco -o naturalista e cartógrafo português Diogo
(o ator lusitano Diogo Infante)-
e uma índia, a "princesa" guaicuru Ánote (Luciana Rigueira).
Humanista, leitor de Rousseau e
Voltaire, Diogo salva Ánote de ser
morta pelos brancos e toma-a como protegida e amante. Da relação entre os dois, nasce um filho,
cujo destino não cabe antecipar
aqui. Basta dizer que a história toda pode ser lida como uma versão
invertida, bárbara e inesperada,
do mito de Iracema.
No elenco, destacam-se ainda
Floriano Peixoto, como um brutal
capitão-do-mato, Leonardo Villar, como o comandante do Forte
Coimbra, e Buza Ferraz, como um
português movido pela miragem
do ouro e da prata.
Lúcia Murat filmou no próprio
Forte Coimbra, no Mato Grosso
do Sul, e contou no elenco com 40
índios kadiwéus, descendentes
dos antigos guaicurus. O ator Murilo Grossi selecionou e preparou
o elenco kadiwéu.
O roteiro, da própria Lúcia, foi
aprimorado no laboratório de roteiros do Sundance Institute.
Amor à música
"Tônica Dominante", de Lina
Chamie, que abriu a competição
de longas anteontem, conseguiu a
proeza de prender a atenção e
sensibilizar uma platéia de quase
mil pessoas, no Cine Brasília,
mesmo contando com apenas um
fio de história e sem fazer qualquer concessão às convenções
narrativas em voga.
O filme, que mostra três dias na
vida de um jovem clarinetista
(Fernando Alves Pinto), impressiona por sua integridade e pela
delicadeza com que exalta a arte,
em suas formas plástica, literária e
musical.
O cinema de Lina Chamie é o lugar onde a música quer ser imagem, a imagem quer ser poesia, a
poesia quer ser música.
Não se trata, em "Tônica Dominante", de ilustrar com imagens e
música uma história preexistente,
como acontece com a maior parte
dos filmes, mas de construir um
organismo autônomo, cujo "motivo" principal e recorrente é a fábula de Anfion, o filho de Zeus
que moveu as pedras com o som
de sua flauta para formar a muralha de Tebas.
O filme tem momentos de uma
beleza inexcedível, como a caminhada do protagonista por uma
São Paulo deserta ao amanhecer,
ou as dunas douradas penteadas
pelo vento, ou o maravilhoso interior de um piano de cauda.
São várias as passagens em que
a câmera perscruta detidamente
os instrumentos musicais -clarinetes, tubas, violinos-, numa relação amorosa, quase erótica.
Kátia Coelho -salvo engano, a
primeira mulher a dirigir a fotografia de um longa brasileiro-
demonstra um domínio absoluto
da luz e da cor, elementos fundamentais do filme. E a montagem,
de Paulo Sacramento, é um prodígio de sensibilidade e precisão.
Fernando Alves Pinto, no papel
central, é um ator econômico e intenso, e seu rosto tem a pureza
frágil que condiz perfeitamente
com o personagem e o filme.
Merece destaque ainda o experiente Carlos Gregório, no papel
do maestro da orquestra, que
conta a fábula de Anfion e infunde em seus músicos a idéia de que
a arte, mais que técnica, é paixão.
"Tônica Dominante" é isso: a técnica a serviço da paixão.
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