São Paulo, sexta-feira, 24 de novembro de 2000

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FESTIVAL DE BRASÍLIA
Antiépico, "Brava Gente Brasileira" retrata contato entre índios e brancos na colonização do país
Lúcia Murat inverte o mito de Iracema

JOSÉ GERALDO COUTO
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

Uma visão antiépica, quase intimista, do contato entre índios e brancos na colonização do Brasil é o que oferece ao espectador o longa-metragem "Brava Gente Brasileira", que será exibido hoje, em competição, no 33º Festival de Cinema de Brasília.
A diretora Lúcia Murat, de "Que Bom Te Ver Viva" e "Doces Poderes", partiu de um episódio real -as escaramuças entre os portugueses e os "índios cavaleiros" guaicurus na região do Forte Coimbra, no Pantanal, em 1778- para tecer uma delicada trama de relações entre indivíduos e culturas inconciliáveis.
No centro desse mundo movediço de ataques e contra-ataques na mata ameaçadora, desponta a complexa relação de amor e poder entre um branco -o naturalista e cartógrafo português Diogo (o ator lusitano Diogo Infante)- e uma índia, a "princesa" guaicuru Ánote (Luciana Rigueira).
Humanista, leitor de Rousseau e Voltaire, Diogo salva Ánote de ser morta pelos brancos e toma-a como protegida e amante. Da relação entre os dois, nasce um filho, cujo destino não cabe antecipar aqui. Basta dizer que a história toda pode ser lida como uma versão invertida, bárbara e inesperada, do mito de Iracema.
No elenco, destacam-se ainda Floriano Peixoto, como um brutal capitão-do-mato, Leonardo Villar, como o comandante do Forte Coimbra, e Buza Ferraz, como um português movido pela miragem do ouro e da prata.
Lúcia Murat filmou no próprio Forte Coimbra, no Mato Grosso do Sul, e contou no elenco com 40 índios kadiwéus, descendentes dos antigos guaicurus. O ator Murilo Grossi selecionou e preparou o elenco kadiwéu.
O roteiro, da própria Lúcia, foi aprimorado no laboratório de roteiros do Sundance Institute.

Amor à música
"Tônica Dominante", de Lina Chamie, que abriu a competição de longas anteontem, conseguiu a proeza de prender a atenção e sensibilizar uma platéia de quase mil pessoas, no Cine Brasília, mesmo contando com apenas um fio de história e sem fazer qualquer concessão às convenções narrativas em voga.
O filme, que mostra três dias na vida de um jovem clarinetista (Fernando Alves Pinto), impressiona por sua integridade e pela delicadeza com que exalta a arte, em suas formas plástica, literária e musical.
O cinema de Lina Chamie é o lugar onde a música quer ser imagem, a imagem quer ser poesia, a poesia quer ser música.
Não se trata, em "Tônica Dominante", de ilustrar com imagens e música uma história preexistente, como acontece com a maior parte dos filmes, mas de construir um organismo autônomo, cujo "motivo" principal e recorrente é a fábula de Anfion, o filho de Zeus que moveu as pedras com o som de sua flauta para formar a muralha de Tebas.
O filme tem momentos de uma beleza inexcedível, como a caminhada do protagonista por uma São Paulo deserta ao amanhecer, ou as dunas douradas penteadas pelo vento, ou o maravilhoso interior de um piano de cauda.
São várias as passagens em que a câmera perscruta detidamente os instrumentos musicais -clarinetes, tubas, violinos-, numa relação amorosa, quase erótica.
Kátia Coelho -salvo engano, a primeira mulher a dirigir a fotografia de um longa brasileiro- demonstra um domínio absoluto da luz e da cor, elementos fundamentais do filme. E a montagem, de Paulo Sacramento, é um prodígio de sensibilidade e precisão.
Fernando Alves Pinto, no papel central, é um ator econômico e intenso, e seu rosto tem a pureza frágil que condiz perfeitamente com o personagem e o filme.
Merece destaque ainda o experiente Carlos Gregório, no papel do maestro da orquestra, que conta a fábula de Anfion e infunde em seus músicos a idéia de que a arte, mais que técnica, é paixão. "Tônica Dominante" é isso: a técnica a serviço da paixão.


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