São Paulo, sexta-feira, 24 de novembro de 2000

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GASTRONOMIA
Veneza, a sereníssima

NINA HORTA
EM VENEZA

Estou em Veneza, o lugar que nunca se desvenda, para onde sempre é preciso voltar. Uma vez para observar os tetos, outra vez para os mosaicos, um Tintoretto, o brilho da água sob uma certa ponte, uns olhos castanhos, uma velha vestida de Burberrys dos pés à cabeça no ônibus que partia para a Giudecca. Tudo como um quebra-cabeça multifacetado, de Murano quebrado, cujas peças não se encaixam nunca. Só brilham e brilham e brilham.
Dizia Salvador Dalí que os melhores instrumentos para filosofar são as mandíbulas, isto é, que é comendo que se filosofa. O que não é mais possível em Veneza, porque os pequenos restaurantes de cozinha típica desapareceram.
Veneza, famosa por seus banquetes e rega-bofes, tem de se contentar com a pizza feita pelo diabo, de massa mole e molho pegajoso aquecida no microondas. E os nativos, assustados com o preço dos aluguéis e de todo o resto, desterraram-se para as cidades próximas.
Marcela Hazan, a ítalo-americana que ensinou os Estados Unidos a comer comida do norte da Itália, tinha um pallazzo em Veneza onde dava aulas de cozinha. Todo cronista gastronômico poderoso foi lá um dia fazer seu curso, cozinhar com ela, descrever a rabugice da empregada, a malcriação de Marcella diante de alunos difíceis e, para culminar, ela os levava para fazer compras no mercado de Rialto.
Jeffrey Steingarten, que teve seu livro publicado aqui pela Cia. das Letras, não fugiu à regra. Em "O Homem Que Comeu de Tudo", tem um capítulo que merece ser levado para a viagem, "Seres da Lagoa Azul". Fez um inventário completo dos peixes, crustáceos, moluscos e seus fins culinários.
Dos que ele cita, vimos as sardinhas iridescentes, os camarões dourados, as sépias, os pequenos polvos, os siris moles em enormes tinas que fervilhavam como um caldo quente. Ele observou um enorme cação sendo cortado. O nosso peixe era um atum. E as enguias, um capítulo à parte. Um livro antigo diz: "Anguilla -assemelha-se um pouco à serpente e pode ser muito comprida, de dimensões conspícuas e, nesse caso, se trata de "capitone". É bom comprá-la sempre viva, o que não é difícil graças à sua enorme vitalidade".
Bem, era isso que o peixeiro fazia. Acabava com a vitalidade do capitone. Escolhia um entre o emaranhado de corpos viscosos, que se moviam lentamente, embaraçando-se. Segurava pela cauda com as duas mãos, levantava os braços e plact!, lançava a cabeça do bicho no chão com a força que podia. Se não matava da primeira vez, continuava tentando até que a espinha se quebrasse e, como se não bastasse, tudo isso aos berros. E, como se ainda não bastasse, a enguia continuava teimosamente viva ou se mexendo toda.
Fazia, então, um corte superficial em toda a volta do pescoço, se é que enguia tem pescoço, e pregava a cabeça do bicho com um grande prego na mesa da peixaria. Começava a puxar a pele para baixo como se a enguia fosse vestida com uma luva apertada. Nua a enguia, limpava-a retirando o fígado, que não é comestível, a cabeça e a cauda. Para filetá-la, cortava a carne ao longo da espinha, dos dois lados, correndo a faca de cima a baixo. E o comprador saía dali com um inocente embrulho de papel na sacola, prelibando o almoço de ensopado de funghi de tomate, enguias na grelha, ao forno, fritas, in saôr...
Não perdi o costume de trazer conchas na mala. Minha filha, o melhor olho para a beleza, me chamou a atenção para as conchas da Shell, "capesante", vieiras enormes, conchas chatas como um prato de sobremesa. Conseguimos umas cem, apesar dos protestos do peixeiro: "Não servem para nada, não se usam, a parte funda é que se aproveita para fazer vieiras ao forno...".
Esquecemos de todos os problemas relativos a malas que aquelas conchas nos trariam, ainda com restos grudados de vieira. Levamos para o hotel e perdemos uma tarde em Veneza raspando e lavando conchas na banheira de água quente. Chegaram aqui lindíssimas, de madrepérola no centro e bordas de marrom-acobreado e furta-cor, boas para servir nelas dois belos sushis, fazendo lembrar para sempre as águas da misteriosa Sereníssima.
E-mail - ninahort@uol.com.br


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