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GASTRONOMIA
Veneza, a sereníssima
NINA HORTA
EM VENEZA
Estou em Veneza, o lugar que
nunca se desvenda, para onde sempre é preciso voltar. Uma
vez para observar os tetos, outra
vez para os mosaicos, um Tintoretto, o brilho da água sob uma
certa ponte, uns olhos castanhos,
uma velha vestida de Burberrys
dos pés à cabeça no ônibus que
partia para a Giudecca. Tudo como um quebra-cabeça multifacetado, de Murano quebrado, cujas
peças não se encaixam nunca. Só
brilham e brilham e brilham.
Dizia Salvador Dalí que os melhores instrumentos para filosofar
são as mandíbulas, isto é, que é
comendo que se filosofa. O que
não é mais possível em Veneza,
porque os pequenos restaurantes
de cozinha típica desapareceram.
Veneza, famosa por seus banquetes e rega-bofes, tem de se
contentar com a pizza feita pelo
diabo, de massa mole e molho pegajoso aquecida no microondas.
E os nativos, assustados com o
preço dos aluguéis e de todo o resto, desterraram-se para as cidades
próximas.
Marcela Hazan, a ítalo-americana que ensinou os Estados Unidos
a comer comida do norte da Itália,
tinha um pallazzo em Veneza onde dava aulas de cozinha. Todo
cronista gastronômico poderoso
foi lá um dia fazer seu curso, cozinhar com ela, descrever a rabugice da empregada, a malcriação de
Marcella diante de alunos difíceis
e, para culminar, ela os levava para fazer compras no mercado de
Rialto.
Jeffrey Steingarten, que teve seu
livro publicado aqui pela Cia. das
Letras, não fugiu à regra. Em "O
Homem Que Comeu de Tudo",
tem um capítulo que merece ser
levado para a viagem, "Seres da
Lagoa Azul". Fez um inventário
completo dos peixes, crustáceos,
moluscos e seus fins culinários.
Dos que ele cita, vimos as sardinhas iridescentes, os camarões
dourados, as sépias, os pequenos
polvos, os siris moles em enormes
tinas que fervilhavam como um
caldo quente. Ele observou um
enorme cação sendo cortado. O
nosso peixe era um atum. E as enguias, um capítulo à parte. Um livro antigo diz: "Anguilla -assemelha-se um pouco à serpente e
pode ser muito comprida, de dimensões conspícuas e, nesse caso,
se trata de "capitone". É bom comprá-la sempre viva, o que não é difícil graças à sua enorme vitalidade".
Bem, era isso que o peixeiro fazia. Acabava com a vitalidade do
capitone. Escolhia um entre o
emaranhado de corpos viscosos,
que se moviam lentamente, embaraçando-se. Segurava pela cauda com as duas mãos, levantava
os braços e plact!, lançava a cabeça do bicho no chão com a força
que podia. Se não matava da primeira vez, continuava tentando
até que a espinha se quebrasse e,
como se não bastasse, tudo isso
aos berros. E, como se ainda não
bastasse, a enguia continuava teimosamente viva ou se mexendo
toda.
Fazia, então, um corte superficial em toda a volta do pescoço, se
é que enguia tem pescoço, e pregava a cabeça do bicho com um
grande prego na mesa da peixaria.
Começava a puxar a pele para baixo como se a enguia fosse vestida
com uma luva apertada. Nua a enguia, limpava-a retirando o fígado, que não é comestível, a cabeça
e a cauda. Para filetá-la, cortava a
carne ao longo da espinha, dos
dois lados, correndo a faca de cima a baixo. E o comprador saía
dali com um inocente embrulho
de papel na sacola, prelibando o
almoço de ensopado de funghi de
tomate, enguias na grelha, ao forno, fritas, in saôr...
Não perdi o costume de trazer
conchas na mala. Minha filha, o
melhor olho para a beleza, me
chamou a atenção para as conchas da Shell, "capesante", vieiras
enormes, conchas chatas como
um prato de sobremesa. Conseguimos umas cem, apesar dos
protestos do peixeiro: "Não servem para nada, não se usam, a
parte funda é que se aproveita para fazer vieiras ao forno...".
Esquecemos de todos os problemas relativos a malas que aquelas
conchas nos trariam, ainda com
restos grudados de vieira. Levamos para o hotel e perdemos uma
tarde em Veneza raspando e lavando conchas na banheira de
água quente. Chegaram aqui lindíssimas, de madrepérola no centro e bordas de marrom-acobreado e furta-cor, boas para servir
nelas dois belos sushis, fazendo
lembrar para sempre as águas da
misteriosa Sereníssima.
E-mail - ninahort@uol.com.br
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