São Paulo, Sexta-feira, 24 de Dezembro de 1999


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CINEMA ESTRÉIAS

"São Jerônimo", de Bressane, chega às telas amanhã

CARLOS ADRIANO
especial para a Folha

Se você não vai passar o Natal ou a virada de 99 para 2000 fora da capital paulista, vale a pena ir correndo, de joelhos, ao Templo do Cinema de São Paulo (vulgo Espaço Unibanco) para um rito religioso em forma de projeção cinematográfica.
"São Jerônimo", de Julio Bressane, finalmente é lançado na cidade (em data ingrata). O filme é um manifesto da beleza contra a mazela. Não é o belo pelo belo, mas a beleza como conhecimento humano e experiência estética, contra a barbárie de toda espécie (social, cultural, política).
Um dos mais eruditos, ousados e originais cineastas brasileiros, Bressane fez aqui um de seus ensaios audiovisuais mais acessíveis. Isso não significa que seja um filme fácil, daqueles que se digerem com pipoca. Mas há prazer e dádiva.
A história é a de Jerônimo, sábio da igreja primitiva do século 4, que definiu a escritura sagrada com a edição-tradução da "Vulgata" (a "Bíblia", do hebraico e grego, ao latim). Metáforas interdisciplinares (pintura, música, literatura, cinema) recriam sua trajetória e os laços com um asceta e o papa Damaso (que o incumbe da missão bíblica).
Arauto do "novo modelo feminino", Jerônimo torna-se orientador espiritual, formando, pela primeira vez no Ocidente, grupos de estudo para a decifração dos textos sagrados, uma espécie de "Círculo Linguístico de Praga" feminista.
Como já fizera em "Brás Cubas" (Machado de Assis) e "Sermões" (padre Vieira), Bressane volta-se ao passado em busca do presente. A obra torna-se mais curiosa ainda se lembrarmos que ele já foi chamado de "o mais ateu dos diretores nacionais" e "monge de si mesmo".
No filme, a investigação do sagrado se faz via luz, e a revelação se dá pela imagem (projeção de sombras). Na primeira parte, corpos, vestes e a caveira ocultam o sol: ao saírem da frente, a luz estoura na lente da câmera, produzindo halos e iluminações. No deserto, a violenta voz do vento sopra por areia, terra árida, vegetação rala e pedras.
Na segunda, a natureza vasta e a arquitetura românica recortam a luz em reflexos na água e relevos em troncos e copas de árvore.
Na terceira parte, Jerônimo volta ao deserto, esfregando-se em inscrições rupestres. O corpo se integra à palavra. Com um senso agudo para geografias imaginárias, Bressane planta paisagens deslocadas em tempo e lugar. Os desertos de Calcis (Síria) e Belém (Palestina) viram o sertão da Paraíba; Roma vira Rio de Janeiro.
Um dos temas do filme é a construção de um novo mundo e um novo sistema de crença, fundados na palavra. Portanto, o filme articula espaços em dimensão atemporal. A saga do santo, recluso na morada do martírio e ameaçado por conspirações do poder em crise, traz uma poesia áspera e sábia que muito nos diz nesta época de "canalha contemporânea" (como fala Damaso).
No deslumbrante e desconcertante plano-sequência final, a câmera varre o horizonte em panorâmica luminosa: é a agonia de Jerônimo, que só deixa o deserto da Palestina, ou o sertão da Paraíba, "no último pau-de-arara".


Avaliação:     

Filme: São Jerônimo
Diretor: Julio Bressane
Produção: Brasil, 1998
Com: Everaldo Pontes, Hamilton Vaz Pereira, Helena Ignez, Bia Nunes
Quando: estréia amanhã, no Espaço Unibanco 3




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