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CINEMA ESTRÉIAS
"São Jerônimo", de Bressane, chega às telas amanhã
CARLOS ADRIANO
especial para a Folha
Se você não vai passar o Natal
ou a virada de 99 para 2000 fora
da capital paulista, vale a pena ir
correndo, de joelhos, ao Templo
do Cinema de São Paulo (vulgo
Espaço Unibanco) para um rito
religioso em forma de projeção cinematográfica.
"São Jerônimo", de Julio Bressane, finalmente é lançado na cidade (em data ingrata). O filme é
um manifesto da beleza contra a
mazela. Não é o belo pelo belo,
mas a beleza como conhecimento
humano e experiência estética,
contra a barbárie de toda espécie
(social, cultural, política).
Um dos mais eruditos, ousados
e originais cineastas brasileiros,
Bressane fez aqui um de seus ensaios audiovisuais mais acessíveis. Isso não significa que seja
um filme fácil, daqueles que se digerem com pipoca. Mas há prazer
e dádiva.
A história é a de Jerônimo, sábio
da igreja primitiva do século 4,
que definiu a escritura sagrada
com a edição-tradução da "Vulgata" (a "Bíblia", do hebraico e
grego, ao latim). Metáforas interdisciplinares (pintura, música, literatura, cinema) recriam sua trajetória e os laços com um asceta e
o papa Damaso (que o incumbe
da missão bíblica).
Arauto do "novo modelo feminino", Jerônimo torna-se orientador espiritual, formando, pela
primeira vez no Ocidente, grupos
de estudo para a decifração dos
textos sagrados, uma espécie de
"Círculo Linguístico de Praga" feminista.
Como já fizera em "Brás Cubas"
(Machado de Assis) e "Sermões"
(padre Vieira), Bressane volta-se
ao passado em busca do presente.
A obra torna-se mais curiosa ainda se lembrarmos que ele já foi
chamado de "o mais ateu dos diretores nacionais" e "monge de si
mesmo".
No filme, a investigação do sagrado se faz via luz, e a revelação
se dá pela imagem (projeção de
sombras). Na primeira parte, corpos, vestes e a caveira ocultam o
sol: ao saírem da frente, a luz estoura na lente da câmera, produzindo halos e iluminações. No deserto, a violenta voz do vento sopra por areia, terra árida, vegetação rala e pedras.
Na segunda, a natureza vasta e a
arquitetura românica recortam a
luz em reflexos na água e relevos
em troncos e copas de árvore.
Na terceira parte, Jerônimo volta ao deserto, esfregando-se em
inscrições rupestres. O corpo se
integra à palavra. Com um senso
agudo para geografias imaginárias, Bressane planta paisagens
deslocadas em tempo e lugar. Os
desertos de Calcis (Síria) e Belém
(Palestina) viram o sertão da Paraíba; Roma vira Rio de Janeiro.
Um dos temas do filme é a construção de um novo mundo e um
novo sistema de crença, fundados
na palavra. Portanto, o filme articula espaços em dimensão atemporal. A saga do santo, recluso na
morada do martírio e ameaçado
por conspirações do poder em
crise, traz uma poesia áspera e sábia que muito nos diz nesta época
de "canalha contemporânea" (como fala Damaso).
No deslumbrante e desconcertante plano-sequência final, a câmera varre o horizonte em panorâmica luminosa: é a agonia de Jerônimo, que só deixa o deserto da
Palestina, ou o sertão da Paraíba,
"no último pau-de-arara".
Avaliação:
Filme: São Jerônimo
Diretor: Julio Bressane
Produção: Brasil, 1998
Com: Everaldo Pontes, Hamilton Vaz
Pereira, Helena Ignez, Bia Nunes
Quando: estréia amanhã, no Espaço
Unibanco 3
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