|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
A criança que perturbou a paz de todos
Padre Cipriano tinha idéias. Era
homem de muitas, muitas e complicadas idéias. Torcia pelo São
Cristóvão, tinha ido à Patagônia
numa viagem que ele inventara,
formara-se em Roma, três doutorados nas costas, aprendera a lutar boxe com um ex-campeão de
pesos-médios da Bulgária, tocava
violino e, nas horas vagas de tudo
isso, traduzia Virgílio para uma
editora francesa.
Mas o forte dele eram as idéias.
E tantas as teve, e tão mirabolantes, que, num Natal ele decidiu
bancar o Papai Noel de todos nós.
Comprou presentes, presentes pobres e úteis: livros, gaitinhas, cometas, raquetes de pingue-pongue, coisas assim.
E pediu que todos os alunos deixassem nas janelas a cesta de vime que recolhia nossa roupa para
a lavanderia. O dormitório ficava
no segundo andar, na parte que
dava para uma rua que a prefeitura começara a urbanizar, fazendo calçada e instalando poste
de luz.
Assistimos à Missa do Galo, fizemos a ceia e fomos deitar. Cada
qual verificou se a cesta estava lá
embaixo, ligada à janela por um
comprido barbante. Alguns prometeram que passariam a noite
em claro, não em vigília de prece
pelo nascimento do menino, mas
para ver padre Cipriano vestido
de Papai Noel, com o saco cheio
de gaitinhas e raquetes de pingue-pongue, colocando em cada cestinha o presente anônimo e modesto.
O Natal avançou sobre o mundo, o céu começou a clarear e as
estrelas se apagaram. Os galos
cantaram nas vizinhanças do Sumaré e os mais renitentes terminaram dormindo. A verdade é
que ninguém viu padre Cipriano
cumprindo o extravagante ofício
de Papai Noel.
Ainda mais que o padre reitor
-que não apreciava padre Cipriano por muitos motivos-
achava a brincadeira de mau gosto. Aliás, padre reitor o detestava.
Padre Cipriano zombava ao mesmo tempo da careca do reitor e de
seu latim macarrônico. Quando
queria insinuar que alguém era
analfabeto, ele citava o reitor que
nunca acertava a "consecutio
temporum" e seria incapaz de
conjugar o verbo "tangere", um
verbo complicado, que tinha um
indicativo presente na base do
"tango" e um pretérito perfeito
que era "tetigi".
Mas desta vez o reitor tinha um
pouco de razão. Aquela brincadeira inventada por padre Cipriano podia ser considerada uma
blasfêmia, Papai Noel era uma invenção mercadológica de povos
ímpios que desejavam substituir a
magia do menino nascido na
manjedoura. Trocava-se a bela
cena descrita no "Evangelho de
Lucas" pelo pançudo velhaco, de
bochechas vermelhas como os bêbados das tavernas, que vinha das
nuvens explorando fatigadas renas.
Bem, questões teológicas e mercadológicas à parte, padre Cipriano não deu bola para as objeções
do reitor e cumpriu sua promessa.
Quando acordamos, puxamos o
barbante e a cestinha subiu, trazendo-nos o milagre da mágica
noite. Lembro que ganhei um livro de contos dos irmãos Grimm,
uma gaita Hering de sopro, na
qual consegui aprender a tocar o
"Noite Feliz! Noite Feliz!", e um pé
de meia vermelha, cheia de balas
de bombons.
Com pouquíssimas variantes,
todos receberam a mesma coisa.
Menos o Macário. Que por sinal
era meu vizinho de janela. Ele
acordou mais tarde, reclamando
que eu tocava a gaitinha, experimentando tirar algum som coerente daqueles furinhos que pareciam pequeninos favos de uma
colméia sem mel.
Macário puxou sua cestinha, estranhou o peso dela, o barbante
arrebentou. Pensou que padre Cipriano, em vez de um presente,
houvesse destinado para ele uma
pedra das grandes -Macário
vencera padre Cipriano num torneio homicida de pingue-pongue
em que as raquetes voaram na cara de cada um.
Ele subiu no peitoril da janela
para ver o que havia de errado
com a sua cesta -e não compreendeu nada.
Pediu que eu visse também. E o
que vi não fazia sentido: dentro
da cesta, envolta em panos, estava
uma criança recém-nascida. Não
havia pastores, nem boi nem vaca
-do contrário aquilo tudo ficaria parecendo uma reprise e uma
irreverência. O que houve, realmente, foi uma grossa, grossíssima complicação.
Um dos empregados que serviam na copa desceu para apanhar a cesta. A criança foi trazida
ao dormitório, onde, de olhos esbugalhados, Macário a repudiava, jurando que nada tinha a ver
com aquilo. Chamaram padre
reitor - que antecipadamente
desaprovara a brincadeira e agora tinha motivos para isso.
-Cadê o padre Cipriano?-
vociferou o reitor, com a criança
ao colo. Padre Cipriano estava rezando missa numa capelinha do
subúrbio. Só viria mais tarde.
A criança chorava, padre reitor
berrava, Macário blasfemava. Para aumentar a confusão, aí apareceram os anjos dando glória a
Deus nas alturas e paz na Terra
aos homens de boa vontade.
Texto Anterior: Fotografia: Fotógrafo registra paisagens e belezas naturais raras do país Próximo Texto: Fim-de-semana: "Boca de Ouro" e Pinacoteca salvam o Natal Índice
|