São Paulo, Sexta-feira, 24 de Dezembro de 1999


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CARLOS HEITOR CONY

A criança que perturbou a paz de todos

Padre Cipriano tinha idéias. Era homem de muitas, muitas e complicadas idéias. Torcia pelo São Cristóvão, tinha ido à Patagônia numa viagem que ele inventara, formara-se em Roma, três doutorados nas costas, aprendera a lutar boxe com um ex-campeão de pesos-médios da Bulgária, tocava violino e, nas horas vagas de tudo isso, traduzia Virgílio para uma editora francesa.
Mas o forte dele eram as idéias. E tantas as teve, e tão mirabolantes, que, num Natal ele decidiu bancar o Papai Noel de todos nós. Comprou presentes, presentes pobres e úteis: livros, gaitinhas, cometas, raquetes de pingue-pongue, coisas assim.
E pediu que todos os alunos deixassem nas janelas a cesta de vime que recolhia nossa roupa para a lavanderia. O dormitório ficava no segundo andar, na parte que dava para uma rua que a prefeitura começara a urbanizar, fazendo calçada e instalando poste de luz.
Assistimos à Missa do Galo, fizemos a ceia e fomos deitar. Cada qual verificou se a cesta estava lá embaixo, ligada à janela por um comprido barbante. Alguns prometeram que passariam a noite em claro, não em vigília de prece pelo nascimento do menino, mas para ver padre Cipriano vestido de Papai Noel, com o saco cheio de gaitinhas e raquetes de pingue-pongue, colocando em cada cestinha o presente anônimo e modesto.
O Natal avançou sobre o mundo, o céu começou a clarear e as estrelas se apagaram. Os galos cantaram nas vizinhanças do Sumaré e os mais renitentes terminaram dormindo. A verdade é que ninguém viu padre Cipriano cumprindo o extravagante ofício de Papai Noel.
Ainda mais que o padre reitor -que não apreciava padre Cipriano por muitos motivos- achava a brincadeira de mau gosto. Aliás, padre reitor o detestava. Padre Cipriano zombava ao mesmo tempo da careca do reitor e de seu latim macarrônico. Quando queria insinuar que alguém era analfabeto, ele citava o reitor que nunca acertava a "consecutio temporum" e seria incapaz de conjugar o verbo "tangere", um verbo complicado, que tinha um indicativo presente na base do "tango" e um pretérito perfeito que era "tetigi".
Mas desta vez o reitor tinha um pouco de razão. Aquela brincadeira inventada por padre Cipriano podia ser considerada uma blasfêmia, Papai Noel era uma invenção mercadológica de povos ímpios que desejavam substituir a magia do menino nascido na manjedoura. Trocava-se a bela cena descrita no "Evangelho de Lucas" pelo pançudo velhaco, de bochechas vermelhas como os bêbados das tavernas, que vinha das nuvens explorando fatigadas renas.
Bem, questões teológicas e mercadológicas à parte, padre Cipriano não deu bola para as objeções do reitor e cumpriu sua promessa.
Quando acordamos, puxamos o barbante e a cestinha subiu, trazendo-nos o milagre da mágica noite. Lembro que ganhei um livro de contos dos irmãos Grimm, uma gaita Hering de sopro, na qual consegui aprender a tocar o "Noite Feliz! Noite Feliz!", e um pé de meia vermelha, cheia de balas de bombons.
Com pouquíssimas variantes, todos receberam a mesma coisa. Menos o Macário. Que por sinal era meu vizinho de janela. Ele acordou mais tarde, reclamando que eu tocava a gaitinha, experimentando tirar algum som coerente daqueles furinhos que pareciam pequeninos favos de uma colméia sem mel.
Macário puxou sua cestinha, estranhou o peso dela, o barbante arrebentou. Pensou que padre Cipriano, em vez de um presente, houvesse destinado para ele uma pedra das grandes -Macário vencera padre Cipriano num torneio homicida de pingue-pongue em que as raquetes voaram na cara de cada um.
Ele subiu no peitoril da janela para ver o que havia de errado com a sua cesta -e não compreendeu nada.
Pediu que eu visse também. E o que vi não fazia sentido: dentro da cesta, envolta em panos, estava uma criança recém-nascida. Não havia pastores, nem boi nem vaca -do contrário aquilo tudo ficaria parecendo uma reprise e uma irreverência. O que houve, realmente, foi uma grossa, grossíssima complicação.
Um dos empregados que serviam na copa desceu para apanhar a cesta. A criança foi trazida ao dormitório, onde, de olhos esbugalhados, Macário a repudiava, jurando que nada tinha a ver com aquilo. Chamaram padre reitor - que antecipadamente desaprovara a brincadeira e agora tinha motivos para isso.
-Cadê o padre Cipriano?- vociferou o reitor, com a criança ao colo. Padre Cipriano estava rezando missa numa capelinha do subúrbio. Só viria mais tarde.
A criança chorava, padre reitor berrava, Macário blasfemava. Para aumentar a confusão, aí apareceram os anjos dando glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade.


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