São Paulo, sexta-feira, 25 de janeiro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

Pavana para os inícios dos anos 60

O Brasil era mais feliz, embora mal informado: não sabia o que vinha pela frente. Naquele final de governo JK, com a inauguração de Brasília dopando o brasileiro de confiança, tudo parecia dar certo, menos a UDN. Aliás, nada podia dar certo para o partido mais reacionário da história pátria. Apostaram que Brasília não seria feita, e a cidade não apenas fora feita mas estava metendo um baita orgulho na alma do povo.
Já havia povo naquele tempo! Povo que o Carnaval de 1960 encarnou na marchinha que se tornou campeã nas ruas e nos salões: "Ei, você aí, me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí!".
Era uma premonição. O povo continuou pedindo dinheiro até que o FMI tornou tudo mais difícil e menos alegre. Por falar em Carnaval, estourou um sucesso que falava do velho tema: ""Eu não quero mais amar/ pra não sofrer/ ingratidão/ depois do que eu passei,/ fechei a porta do meu coração". A voz tristonha de Jamelão levou o sucesso para o chamado "meio ano" e a música foi ficando. Outras acabaram, como o "Bububu no bobobó", título cabalístico de uma revista na praça Tiradentes que ameaçou sucesso, mas não deu para saída. Todo mundo entendeu que havia alguma sacanagem no título, mas nem a censura nem a plebe sacaram o que era um bububu, embora o bobobó fosse manjado: coisas.
Juscelino metia o pé na tábua e fazia obras. Um deputado alagoano fez um discurso provando que JK era o grande sedutor, o grande tentador, o Grande Satã -em encarnação diamantinense e pré-fundamentalista. Outra vez: coisas.
Ivone de Carlo esteve no Rio com tudo a que tinha direito, inclusive de dar algumas voltas com Jorginho Guinle e com o finado Harry Stone. O fotógrafo Gervásio Baptista atestou: - ""Foi a mulher mais bonita que já fotografei" -confessou Gervásio, sem saber que um dia fotografaria Roberta Close.
No cenário internacional, a figura mais discutida era a de Nikita Kruchev, tipo bonachão, parecido com o papa reinante, João 23, um ""contadino" que mudaria a história do século. Aliás, os dois não eram parecidos apenas no físico: ambos promoveram mudanças nos chamados contextos internos: Kruchev denunciou os crimes de Stálin, e o papa Roncalli convocou o Concílio Vaticano 2º. Depois deles, o mundo não seria o mesmo.
Nos Estados Unidos, o general Eisenhower havia sido herói na guerra, mas exibia um rosto patibular, enquanto que outro general, o De Gaulle, pensava ser a encarnação de Joana D"Arc e compunha um visual cheio de ""grandeur" -a França também estava mal informada, havia a Argélia e os filmes de Brigitte Bardot.
Bem, surgiram os carros nacionais, o brasileiro não se habituou ao nome complicado que Hitler dera ao carro do povo (Volkswagen) e aí surgiu o Fusca, dando oportunidade à classe média de ir ao paraíso motorizada.
Ah, o calor das noites dos anos 60! A boate Arpege atraía o mulherio esfomeado de emoções; ouvir Valdir Calmon tocando ""Silvando el Mambo" era uma receita de orgasmo ou de dor-de-corno -aliás, havia muito corno na época, pois muito se amava naqueles idos.
Pablo Neruda aqui chegou ciceroneado pelo vate Thiago Amadeu de Mello. Neruda era então o poeta mais importante do mundo, sua ""Canción Desesperada" excitava as meninas que faziam curso de letras nas faculdades da vida. Ninguém tinha o direito de amar ou de ser amado se não soubesse pelo menos o verso letal: ""Es tan corto el amor y tan largo el olvido" (com uma dose de cuba libre, a transa era fatal).
A revista ""Manchete" estampava em capa a jovem rainha Elisabeth trazendo ao colo um de seus filhos. Tal como o povo, também a família real inglesa já existia naquele tempo. Mas nem só de cornos e reis vivia o mundo.
Baby Pignatari, nosso playboy mais bem-sucedido além-fronteiras, tinha um caso complicadíssimo (todos os seus casos eram complicados) com uma princesa de duvidoso pedigree, Ira de Fürstemberg. Depois de passar pelo Baby, ela caiu tanto que terminou fazendo ponta em novela de TV.
E havia a fulminante ascensão de Jânio da Silva Quadros, que já fora prefeito da capital e era governador de São Paulo. Seria eleito sucessor de Juscelino -e aí começariam as nossas desgraças. Mas naquele tempo todo mundo se divertia e achava que o Brasil era o maior, o filme "Ben-Hur" ganhava o Oscar. E graças à corrida de bigas, Ben-Hur tornou-se padroeiro dos motoristas de táxi em Roma.
Para contrabalançar tamanha euforia, depois do secular flagelo da seca, uma inundação monstro fazia o wagneriano governador do Ceará, Parsifal Barroso, declarar entre lágrimas: ""Foi pior do que o dilúvio da Bíblia".
Biblicamente mais pobre, o nordestino emigrava em massa para o eldorado que JK construíra no Planalto Central, mas aqui no Rio o pessoal cantava o sambinha do arquiteto Billy Blanco: ""Não vou não vou para Brasília, nem eu nem minha família..."
Recusando os salários em dobro que o governo prometia pagar aos pioneiros, o sambinha declarava que o melhor era ficar pobre sem deixar Copacabana. A má informação era geral.



Texto Anterior: Literatura: Morre porto-riquenho Manuel Ballester
Próximo Texto: Personalidade: Sociólogo Pierre Bourdieu morre aos 71
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.