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São Paulo, sábado, 25 de janeiro de 2003

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"A VIDA ÍNTIMA DAS PALAVRAS"

Escritor utiliza etimologia para criar abecedário de curiosidades

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Você sabia que originalmente a palavra "salário" significava um pouco de sal ou ainda o dinheiro para comprar o sal que conservava a comida? Nós, que só falamos do salário pensando no quanto vamos receber e gastar, descobrimos em "A Vida Íntima das Palavras", de Deonísio da Silva, que o termo faz menção à precariedade da vida dos antepassados. Com a descoberta, nos inscrevemos na história da humanidade e nos esquecemos das nossas infinitas questões materiais.
A cada verbete do livro, o leitor se surpreende com o fato de que as palavras contam histórias. De que elas são serezinhos falantes, ou falesseres, como diria Lacan referindo-se ao sujeito que nasceu para a fala, para o falo e para o falecimento, um dia. O título, escolhido pelo editor Pedro Paulo Senna Madureira, é perfeito. Só os falesseres ou os seres constituídos pela fala têm uma vida íntima.
Não é preciso dizer mais para dar a entender que se trata de um abecedário de curiosidades. A começar, aliás, pela palavra abecedário. Vem do latim abecedariu e diz respeito a todas as letras que compõem o alfabeto. A propósito, o autor conta uma história que poderia ser sintetizada pelo adágio "O silêncio é de ouro".
Uma história que vale lembrar: "Antigo filósofo grego, querendo ausentar-se, pediu permissão ao imperador romano Augusto e este, ao conceder-lhe a licença, solicitou em troca um conselho para a vida inteira. Recebeu o seguinte: "Todas as vezes que vos estimular a ira, correi uma por uma todas as vinte e quatro letras do abecedário grego, antes de falardes a primeira palavra".
"A Vida Íntima das Palavras" foi escrito por um autor que é um ex-seminarista e tem uma paixão religiosa pela língua. Um homem de São Carlos, ou Santo Carlos, como ele gosta de dizer. Trata-se, na verdade, de um dicionário que só um escritor poderia ter feito. Porque o autor tanto leva em conta o que foi escrito sobre a palavra, quanto o que sobre ela foi dito -como o psicanalista.
Nesse dicionário da língua portuguesa do Brasil, além da etimologia da palavra e daquilo que ela nomeia, você sempre aprende algo novo, precisamente porque Deonísio da Silva vive atento às falas do país. Revela aquilo de que não temos uma consciência clara.
Conta, por exemplo, que abafar veio do árabe al-bakhar e que os mouros trouxeram o vocábulo para a língua portuguesa, onde se transformou em verbo com os significados de sufocar, asfixiar e correlatos. Mas a isso, graças à sua escuta, ele acrescenta que se trata de uma das palavras mais presentes no vocabulário de nossos técnicos de futebol, por estarem eles "sempre reiterando que a tática é abafar o adversário em seu próprio campo".
"A Vida Íntima das Palavras" é muito mais do que um livro de referência, é um livro de meditação e de cabeceira. Além de ser eterno como "Avante Soldados para Trás"- sobre a guerra do Paraguai- ou "Teresa"- sobre a santa-, dois romances de um homem que ama a língua portuguesa e as mulheres e as santas.
O primeiro escritor na nossa literatura que focaliza a relação entre os sexos, enternecendo-se com ela, entregando-se sem medo ao seu fascínio pela figura feminina, comparando, por exemplo, no "Avante Soldados para Trás", as paraguaias a galope a centauras cheias de graça; ou ousando, no "Teresa", um narrador que afirma ser um homem lésbico.


Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de "O Papagaio e o Doutor" (Record), entre outros


A Vida Íntima das Palavras
   
Autor: Deonísio da Silva Editora: Arx Quanto: R$ 39,90 (496 págs.)




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