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São Paulo, sábado, 25 de janeiro de 2003

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"O CORSÁRIO"

Autor comandou invasão francesa ao país

Tradução compromete obra de Duguay-Trouin

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

O nome do livro foi modificado; o nome do autor não aparece por inteiro na capa; o primeiro parágrafo não foi traduzido; há erros de tradução de vários calibres; faltam notas explicativas; e a introdução é um texto chinfrim com poucos dados úteis.
É pena, pois trata-se de uma obra que ficou mais de 250 anos sem ser traduzida completa para o português -as clássicas "Memórias" do corsário francês René Duguay-Trouin (1673-1736), que comandou a esquadra que tomou o Rio de Janeiro em 1711.
O nome do autor é grafado na capa apenas como Du Guay-Trouin. Além de não ser o nome completo, revela uma grafia alternativa que ele próprio não usava. Como lembrou o historiador inglês Charles Ralph Boxer (1904-2000), autor da ainda hoje melhor descrição do saque do Rio, o corsário assinava "Duguay-Trouin". O título desta edição brasileira -"O Corsário - Uma Invasão Francesa no Rio de Janeiro - Diário de Bordo"- é enganoso. As "Memórias" não se limitam ao episódio da tomada do Rio, nem são "diário de bordo".
Há episódios divertidos, como uma rocambolesca escapada de prisão. Os combates navais das duas guerras em que ele se envolveu antes de atacar o Rio são leitura fascinante.
Um pequeno trecho relativo à tomada do Rio foi editado recentemente por Jean Marcel Carvalho França em "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial" (ed. José Olympio, 2000). Quem quiser se informar sobre a história da publicação das "Memórias" e do ataque ao Rio deve procurar esse livro bem melhor editado.
É preciso reconhecer que é uma tradução difícil, nem tanto pelo francês do século 18, mas pela quantidade de termos náuticos da navegação a vela. Há um erro logo no quadro mostrando as partes de um navio (páginas 28 e 29). O "mât de misaine" francês não é o mastro da mezena em português ("mizzen mast" em inglês), apesar de a palavra parecer a mesma; trata-se do mastro do traquete. O mastro da mezena é o "mât d'artimon".
Em dado momento, o tradutor verte "traversiers" por "navios costeiros" (página 140); logo depois (página 143) mantém a palavra em francês. "Traversier" era um pequeno navio equipado com morteiros que disparavam granadas em trajetórias parabólicas. Poderia ser traduzido por "bombardeira". E a melhor tradução para "vaisseau" não é a literal "vaso de guerra", mas "nau".
No episódio da fuga da prisão, o corsário foi ajudado por uma bela mercadora francesa que morava em Plymouth, Inglaterra, cujo nome ele omite.
Em uma nota de rodapé na excelente edição francesa publicada em 91 pela Éditions France-Empire, o editor Philippe Clouet informa que a moça se chamava Hélène des Rantours, era filha de protestantes fugidos da perseguição religiosa na França e que tomava conta de uma loja de rendas junto com a mãe. Duguay-Trouin a chama de "fort jolie marchande", negociante muito bela.
Que fez o imaginativo tradutor brasileiro? Traduziu "marchande" por "meretriz" e por "prostituta", obviamente achando que era outro tipo de mercadoria que a bela rendeira Hélène vendia.
Duguay-Trouin, como todo vencedor, procura exagerar a força do inimigo para com isso ressaltar o seu próprio feito. Ele contou canhões demais nos fortes que defendiam o Rio. Por exemplo, o Forte de São Tiago teria 12 canhões, e o Forte da Misericórdia, mais 18. Na verdade, os dois fortes eram um só -Forte de São Tiago da Misericórdia ou do Calabouço-, que tinha apenas um canhão em 1711, segundo o Barão do Rio Branco. Explicações como essa teriam sido úteis ao leitor brasileiro, mas esta péssima edição é virgem delas.


O CORSÁRIO
  Autor: Du Guay-Trouin Tradução: Carlos Ancedê Nougué Editora: Bom Texto Quanto: R$ 30 (196 págs.)




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